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    O pequeno vaqueiro

     

     Assim, não me pergunto se meu pai me amava, devia amar, como acho

    que todo pai deve amar o filho, mas este meu estouvamento vem destas eras perdidas. A lembrança que guardo é daquela serra escura, azulada que parecia querer despencar sobre as cabeças. O mugido uníssono daquela gadaria me entorpecia.

     Pensar sobre meu destino naquela época, era coisa distante demais para mim, nem vinha ao caso, como dizia o povo da roça. Pensar, nem sei se eu pensava, para ser franco. Às vezes acho que sofri demais, outras acho que foi muito bom. É uma confusão na cabeça.Prefiro quase sempre deixar pra lá. Mas as vezes morde, morde por dentro, então falo.

    Lembro daquela cara enrugada e encardida do meu pai , sem os dentes da frente, dizendo pra mim que eu ia pra Guanhães, trabalhar com Seu Genor.

    Disse isso depois do comer do almoço, minha irmandade toda me olhando

    com tristeza. Vi água nos olhos da minha mãe. O resto da ordem veio rápido para eu arrear o cavalo que a gente já ia sair.  Tentei falar alguma coisa, ele nem me olhou, fez só um aah!

    Fui quase só com a roupa do corpo, uns mulambos de roupa velha num bornal de pano com a alça enfiada no pescoço, um caderno de escola e um lápis preto com borracha.

     - Procede bem que Seu Genor é muito severo e muito bravo, dei licença pra ele te educar se precisar; mas está garantido que você não vai passar fome,

    mas nada de preguiça, você vai aprender trabalhar bem. Lá tem muita coisa pra fazer, e nada de andar em más companhias, presta bem atenção no que estou falando. Se ele te devolver, aqui o castigo é certo. Nada de chorar, não é coisa de homem e se tiver que chorar, chora, no escondido, de noite, na cama que é lugar quente, e não deixa ninguém ver, porque se ele te devolver é castigo certo. Pode contar com isto.  Meu pai gritou em direção a varanda :

    -  O menino é esse.

    -  Vamos apear seu João.

    -  Não seu Genor, tenho que fazer.

    Pulei da garupa e fiquei parado ao pé da escada vendo meu pai sumir no caminho até que virou uma sombra menor do que um urubu.

    - Entra rapaz – falou aquela voz forte, poderosa, que me fez estremecer. Subi as escadas rapidamente, ele me apertou a mão com muita força.

    – Vem cá na cozinha. Me acompanha.

    – Dá almoço pra ele, Branca - falou com a dona branquinha e fina que estava acabando de raspar o prato .

    -Ele pode servir – ela respondeu sem levantar os olhos.

    -Ele não tem costume – retrucou- é melhor fazer o prato dele.

    Minha primeira refeição ali foi tanto comer que achei que ia passar mal, e passei mesmo; quando fui juntar os bezerros de tarde, tive que ir no mato. E daquele dia em diante comer tornou-se o meu divertimento.Quando não estava trabalhando,  estava comendo, nesse ponto achava ali o paraíso. Em pouco tempo fiquei gordo como um capado.Acordava  cedo para  buscar as vacas, quando chegava no malhadô, algumas  deitadas, outras pastando, todas mugindo, reclamando de tanto leite nas tetas, e eu com muito sono aproveitava aquele momento de verdadeira liberdade e me deitava ; as vezes dormia demais e tinha que inventar mentiras na volta.

    Várias vezes a mentira era verdade, chegava lá achava duas, três cascavéis mamando nas vacas, tinha que esperar as danadas largar o peito, senão elas matavam as vacas.

    Vivi seis anos naquele mundo de vacas, bois e bezerros. O cheiro de leite misturado com cheiro de estrume até hoje não saiu das minhas mãos. Sem outro que fazer, aprendi a me divertir com os outros moços da fazenda, arranjei uns namoricos bobos, desses de olhar de longe, aprendi a roubar no truco, engrossei a voz, sentia arrepios quando via o garrote cobrir as vacas.

    Um domingo, depois de já estar com tudo arrumado, bezerros presos, vacas no pasto, me bateu tristeza das grandes, vontade de ir embora, de não ficar mais ali. Conhecer mundo, o mundo da televisão que as vezes eu via na varanda da fazenda. No outro dia falei com Seu Genor das minhas vontades.

    - Seu pai é que resolve - disse ele. Vai lá no domingo e conversa com ele.

    Meu pai ficou muito bravo na hora que me viu, mas abraçou-me de maneira forte e me disse:

    - Você agora é um homem. Você sabe nossas condições, filho, esse negócio de plantar para comer...  vir pra cá acho que não vai ser uma boa pra você, qual a sua idéia ?

    - Quero correr trecho, pai. Conhecer cidade, arranjar um emprego, ser

    fixado.

    - Filho, eu tenho medo da cidade, mas não vou te segurar. Combina com Seu Genor sua saída, ele foi muito bom ,você ainda vai me dar razão. Mas

    vem ficar um tempo aqui antes de sumir por aí para sua mãe não sentir muito sua falta.

    Uma segunda feira de maio, não lembro o ano, com dezessete anos no lombo, depois de ter passado três semanas com meus irmãos, tomando banho de rio, comendo paçoca de amendoim, frango com quiabo, farofa de torresmo, biscoito de goma, vim embora correr trecho, e estou correndo até hoje.

    Geraldo Felix Lima