AS SINFONIAS DE BEETHOVEN - PAULO SÉRGIO MALHEIROS DOS SANTOS




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  • AS SINFONIAS DE BEETHOVEN

     

    Paulo Sérgio Malheiros dos Santos

    Pianista, doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico (Editora da Universidade Federal de Minas Gerais) e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado (Editora da PUC Minas).   

               

     

    As Sinfonias de Beethoven figuram hoje entre as obras mais consagradas pelo público de concertos. Entretanto, a maioria dos ouvintes contemporâneos do compositor reagiu com assombro e incompreensão às suas inovações — as primeiras críticas julgaram-nas intermináveis e fatigantes! De fato, essas sinfonias, desenvolvidas em grande escala, exigiam do público uma concentração sem precedentes. As Nove Sinfonias só se impuseram no repertório a partir de meados do século XIX, até ocuparem definitivamente um espaço ímpar no cânone da música sinfônica. Elas iluminaram as anteriores realizações de Haydn e Mozart como limites da perfeição clássica e, transcendendo corajosamente tais modelos, criaram nova referência musical, com novos padrões formais e inusitado poder emocional.

    Entretanto, de maneira geral, Beethoven não alterou substancialmente a forma básica do gênero; apenas a Sexta sinfonia (com seus títulos descritivos) e a Nona (com elementos de uma verdadeira cantata) diferem significativamente do modelo de Haydn. Planejadas para o grande público, as sinfonias eram menos adequadas à experimentação formal que caracterizaria a produção beethoveniana nos gêneros mais intimistas das sonatas para piano e dos quartetos de cordas. Quanto à orquestra, por exemplo, ele manteve o formato estabelecido pelas últimas sinfonias de Haydn. Excepcionalmente, Beethoven usa trombones, como nas Sinfonias V, VI e VII; na Eroica, acrescentou uma trompa; no final da Quinta emprega o flautim e o contrafagote; na Nona, eleva para quatro o número de trompas e amplia a percussão com o uso da então chamada “música turca” — triângulo, pratos e bumbo, somados aos dois tímpanos habituais.  O pensamento orquestral de Beethoven excedeu os recursos dos instrumentos da época e sofreu desvantagens, por exemplo, no emprego das trompas e dos trompetes. Ao contrário, seu uso original do fagote e dos tímpanos mostrou-se particularmente satisfatório. O tratamento beethoveniano dos sopros, considerado excessivo à época, causou espanto — alguns críticos o condenavam pela inclusão de uma banda no domínio orquestral.  

    A grande novidade orquestral de Beethoven, sobretudo a partir da Terceira Sinfonia, refere-se ao uso de maciços blocos sonoros, realizados através da separação dos timbres. Movimentando-os, o compositor manipula com precisão seus ataques, a densidade, a potência, os contrastes entre eles, ciente de sua eficácia sobre os ouvintes.

     Foi na busca da expansão do conteúdo espiritual e emocional de suas obras que Beethoven ampliou a arquitetura formal da sinfonia. A própria natureza de seu pensamento composicional tornou quase inevitável sua excelência no gênero, permitindo-lhe explorar ao máximo as possibilidades expressivas da música puramente instrumental. E é interessante observar que, sob esse aspecto, o talento beethoveniano diferia-se radicalmente do de seu ídolo Mozart, autor eminentemente teatral pelo caráter vocal de suas melodias. O músico de Bonn, em pleno século XVIII, imbuído de um conceito já romântico, empenhou-se em demonstrar que as formas puramente instrumentais seriam capazes de exprimir ideais e sentimentos profundos.

    Quanto ao número de movimentos, Beethoven seguiu o modelo das sinfonias londrinas de Haydn (apenas a Pastoral tem cinco movimentos, com os últimos três encadeados sem interrupção). Outra herança haydniana são os prelúdios lentos, que anteriormente incluídos em sonatas para piano do próprio Beethoven, iniciam as Sinfonias I, II, IV e VII. A Terceira usa apenas dois acordes introdutórios. As Sinfonias V e VI não têm introdução e a IX apresenta uma breve passagem de dezesseis compassos.

    Os primeiros movimentos das sinfonias de Beethoven estão escritos na forma de sonata clássica (com exceção da Nona que apresenta um discurso onde a exposição dos temas e o desenvolvimento se apresentam em conjunto). Nesses primeiros movimentos, o pensamento instrumental do compositor interfere principalmente na articulação dos dois temas constituintes da forma. Haydn freqüentemente os relacionava, derivando o segundo do primeiro. Beethoven, ao contrário, valorizou a diferenciação entre o caráter dos dois temas principais pelo contraste rítmico, instrumental e pela distância das relações tonais entre eles. Explorando o conflito das idéias antagônicas contidas em dois temas opositores, o compositor transforma seus desenvolvimentos em um processo dialético de grande tensão. Os movimentos tornam-se assim necessariamente longos — a Eroica era muito mais longa e mais complexa do que qualquer sinfonia composta antes, com o imenso primeiro movimento repleto de material temático e extraordinária amplitude tonal. No final dos movimentos, a Coda beethoveniana ganha proporções de um segundo desenvolvimento, ressaltando a última aparição do tema vitorioso com insistentes afirmações tonais (a Quinta, por exemplo, apresenta uma série bombástica de redundantes acordes de tônica).

      Na seqüência das várias seções dos outros andamentos, há uma lógica motriz que continuamente impulsiona a música, construindo a totalidade da obra como expressão completa e única. Essa coerência interna, perceptível em cada uma das sinfonias, desde a Primeira até a Nona, acentua-se ainda mais pela ligação direta entre alguns movimentos (os dois últimos da sinfonia V e os três últimos da VI).

      O movimento lento mantém nas sinfonias de Beethoven o caráter essencialmente melódico, mas se adapta formalmente a uma função bem determinada pelo contexto da obra — daí, portanto, serem tão diferenciados (ou mesmo suprimidos). A visionária e trágica Marcha fúnebre, Adagio assai da Terceira talvez seja o movimento lento mais célebre de todas as sinfonias. Na Quinta, o Andante com moto é um conjunto de variações ligadas por misteriosas e modulantes passagens. A “Cena às margens do riacho”, Andante molto mosso da Pastoral, abre espaço a algumas intenções descritivas e intervenções puramente imitativas (o próprio Beethoven menciona na partitura o canto dos pássaros: a flauta se faz de rouxinol, o oboé imita a codorniz e a clarineta o cuco). As duas sinfonias seguintes não possuem movimentos lentos: o Allegretto da Sétima, com caráter de marcha, mantém em primeiro plano o interesse rítmico que domina toda a sinfonia. O Allegretto scherzando da Oitava, deliciosamente divertido, traz um acompanhamento mecânico para a saltitante melodia, provável homenagem a Mälzel, inventor do metrônomo. Finalmente, o Adagio molto e cantabile, terceiro movimento da Nona, tem uma forma comum aos últimos quartetos do compositor — consiste em um lied de profundidade e intensidade inigualáveis, formado pela alternância de dois temas, suas variações e interlúdios.

    O movimento de dança sofre uma sensível modificação em Beethoven. O inevitável Minueto das antigas sinfonias lhe parecia socialmente obsoleto e bem acanhado musicalmente. O compositor o substitui então pelo Scherzo, mantendo a mesma estrutura, ou seja, com o Trio intermediário e o retorno da cappo, mas com conteúdo diferente — agitado, fantástico, impetuoso, livre — e dimensões maiores. Beethoven usou pouco o termo scherzo, mesmo para definir movimentos que claramente são scherzi. Nas sinfonias usou-o apenas na Segunda e na Terceira, normalmente limitando-se à indicação do tempo.

    O último movimento das sinfonias de Beethoven adquire notável importância, como ponto culminante da construção musical. Com exceção dos finais da 1ª e 4ª Sinfonias (que se inscrevem na tradição vienense) e o da Sexta (com seus títulos descritivos), os restantes possuem uma tensão e um clímax incontestáveis.

    Em 1824, em Viena, com a estréia da Nona Sinfonia, Beethoven assinalava para o grande público mais uma mudança em sua obra, após  um solitário e prolongado silêncio de quase uma década — comentava-se que, surdo e mergulhado em problemas pessoais, ele se tornara incapaz de compor. Durante o concerto, realizado no dia 7 de maio, o compositor sentou-se no palco, seguindo a partitura.  Ao final da sinfonia, Beethoven permaneceu imóvel; uma cantora tomou-o pelo braço, virou-o e mostrou-lhe o público, para que ele pudesse  ver com que entusiasmo era aplaudido.

    Musicar o poema de Schiller era um antigo sonho do compositor. A leitura das Cartas sobre a educação estética do homem fora decisiva em sua reflexão sobre a função pública e o poder instrutivo da Arte para a sociedade e os indivíduos, conduzindo-os a níveis mais elevados de comportamento e convivência.

    Depois do sucesso da estréia da Nona Sinfonia — com sua declaração urgente e circunstancial de que todos os homens devem ser irmãos — o compositor, do alto de sua glória, dispôs-se ainda a mudar seus códigos. Retorna às técnicas contrapontísticas bachianas, estuda a música renascentista e a harmonia modal. Serenamente, desvencilhava-se da tendência ao retórico, libertava-se dos efeitos fáceis e buscava sua voz mais íntima  e atemporal. As últimas obras primas de Beethoven, as últimas sonatas para piano e os últimos quartetos, permaneceram incompreendidas por seus contemporâneos. A morte inviabilizou os planos de uma Décima Sinfonia.  

    A posteridade encontrou em suas obras um legado inesgotável; e os compositores um desafio.  Após Beethoven, a sinfonia romântica trilhou dois caminhos principais: em uma direção, Mendelssohn, Schumann e Brahms adaptaram-na à expressão mais intimista do Romantismo — reduzindo as proporções dos movimentos intermediários, tomaram como modelo principalmente a Quarta e a Oitava sinfonias. Em outra vertente, Berlioz e Liszt, muito influenciados pela Sexta Sinfonia, adotaram os programas extramusicais para os poemas sinfônicos. A última grande sinfonia de Schubert, escrita sob o impacto da Nona de Beethoven, aponta para o futuro e possui atributos comuns às obras posteriores de César Franck (1822-1890), Anton Bruckner (1824-1896) e Gustav Mahler (1860-1911), valorizando a tendência para a unidade cíclica e disposição formal em amplos espaços harmônicos.

    E, até mesmo para os compositores contemporâneos que adotam processos diametralmente opostos aos seus, as Nove Sinfonias de Beethoven permanecem imprescindíveis.

     

     

     

     

    Referências

     

     

    COOPER, Barry (org.). Beethoven – Um compêndio. Trad. Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

    LOCKWOOD, Lewis. Beethoven, a música e a vida. São Paulo: Códex, 2004.

    MAGNANI, Sergio. Expressão e comunicação na linguagem da Música. Belo Horizonte: Ufmg, 1989.

     

    SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1995.