CRÔNICAS DO VÔ - DERRAMANDO CAFÉ




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  • DERRAMANDO CAFÉ

     

    Li no romance Quarup, de Antônio Callado: por volta de 1950, havia tanta formiga-saúva no país, que era corrente o ditado “ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Agora, em 2021, podemos adaptar esse ditado, dizendo assim: ou acabamos com as “redes sociais” ou as “redes sociais” acabam com a gente.

    Somos bombardeados por tanta notícia e informação que não temos tempo para “ruminar” e digerir tudo o que nos é repassado. Conclusão: passamos a ter uma visão superficial sobre tudo, julgando que sabemos das coisas quando, cada vez mais, nos tornamos mais e mais ignorantes. E o pior: passamos a fazer juízo de valor, enaltecendo canalhas e condenando inocentes. Veja este exemplo:

    Em um desses sites de notícias que circulam entre as redes, estava esta manchete: “PM acaba com festa na casa de Elba Ramalho. Cantora dançava sem máscara em outro com...”. Outros sites detalhavam: a festa aconteceu em Troncoso, Bahia, nas comemorações de Natal. E todos atiravam pedras na pobre coitada da Elba que, depois fiquei sabendo, simplesmente alugou sua casa, através de uma agência, e estava, na hora do forrobodó, assistindo... a uma missa.

    Você pode dizer que, no frigir dos ovos, tudo terminou bem, que a verdade foi restabelecida e Elba inocentada. Tá. No entanto, é preciso considerar que muitos, ao tomaram conhecimento do fato, só tiveram acesso à primeira versão, nem se deram ao trabalho de questionar o que lhes era repassado. Engoliram sem mastigar e, depois, foram vomitando nas suas redes de contatos, espalhando maledicências e venenos.

    E assim está o Brasil, sendo atacado por vírus por tudo quanto é lado. Dá até saudade dos tempos da formiga-saúva. Muita gente pode pensar assim: - Ah, tempo bom aquele!

    Hoje em dia, até o que aparenta ser bom não é bom, está errado. Veja este exemplo:

    Uma parente muito querida me enviou uma mensagem de Ano Novo. Você sabe, nesta época do ano, pululam nas redes sociais mensagens edificantes. Muitas aparentam um verniz de bondade. Quando a gente vai analisar, não é bem assim, como observei no relato abaixo, transcrito tal qual foi recebido, com direito a muitos erros de pontuação e concordância:

    Querido Eleutério,

    Para encerrar este ano, a mensagem do grande filósofo Mário Sérgio Cortella... Vale a pena refletir.

    "Tu vais andando com a tua xícara de café... E de repente alguém te empurra fazendo com que tu derrames café por todo o lado.

    Por que tu derramaste o café?

    Porque alguém me empurrou!

    Resposta errada! Derramaste o café porque tu tinhas café na caneca. Se tu tivesse chá... Tu terias derramado chá. O que tu tiveres na xícara é o que vai se derramar.

    Portanto... Quando a vida te sacode o que tiveres dentro de ti... Tu vais derramar.

    Tu podes ir pela vida fingindo que a tua caneca é cheia de virtudes, mas quando a vida te empurrar, tu vais derramar o que na verdade existir no teu interior.  Sempre sai a verdade à luz.

    Então, terás que perguntar a si mesmo. O que há na minha caneca?

    Quando a vida ficar difícil... O que eu vou derramar? Alegria... Agradecimento... Paz... Bondade... Humildade? Ou raiva... Amargura... Palavras ou reações duras? Tu escolhes!

    Agora... Trabalha em encher a tua caneca com gratidão... Perdão... Alegria... Palavras positivas e amáveis... Generosidade... E amor para os outros.

    O que estiver na tua caneca, tu és o responsável.

    E olha que a vida sacode.  Às vezes sacode forte. Sacode mais vezes do que podemos imaginar...

    Você é o responsável pelo que tem na sua xícara. O que tem nela?"

     Feliz 2021!.

    Na minha resposta, disse:

    - Respondendo ao Cortella: o que tem na minha xícara? De manhã, certamente café; à noite, chá de camomila com maracujá. E durante o dia? Bom, durante o dia não estarei com uma xícara na mão, mas um prato.

    (Pra rir discretamente, neste final de um ano tão cheio de amarguras.)

    Quando li o texto, pensei primeiramente: - Não é do Cortella! Se for, nosso filósofo atolou de vez no lamaçal da autoajuda. Depois, pensei assim: - Pode ser. Pode ser que nosso filósofo ficou cego com os holofotes da fama.

    Sendo ou não sendo do Cortella, o texto exala pedantismo, com “tu” pra cá e “tu” pra lá, nunca vi tanto “tus” juntos. O autor inicia uma frase com “tu” e eu sei que ele está falando do “tu”, mas, desconfiado de minha percepção, volta a repetir o “tu”, jogando o discurso todo numa verdadeira tutuzada: “Se tu tivesse (!) chá... Tu terias derramado chá”. O pronome “tu” aparece 12 vezes no texto. Poderia ser 13, se, no final, em vez “você é o responsável pelo que tem na sua xícara”, fosse dito: “tu és o responsável pelo que tens na tua xícara”.

    Nove fora os 12 tus, o texto transborda de sentimentos de posse: tua: 4, te: 3, me: 1, ti: 1, teu: 1, si: 1, minha: 1, eu: 1, sua: 1. Embora queira passar a ideia de generosidade, de desapego, o que ele faz é justamente reforçar o individualismo. O autor quer que as pessoas derramem gratidão, perdão, alegria, palavras positivas e amáveis, generosidade, amor. Mas, segundo ele, isso só será possível quando forem empurradas, tropeçarem, quando a vida sacudir forte. Ora, quer dizer que só serei generoso por acidente, quando a vida me sacudir?

    O individualismo ficou claro de vez quando os sentimentos são transportados em xícaras e só são derramados quando a pessoa tropeça ou é empurrada. Se devemos compartilhar, a imagem usada deveria de uma jarra. Quando o autor fala em xícara, está querendo dizer que cada um deve cuidar de si, sem compartilhar com mais ninguém.

    Se for para levar a sério o que o autor disse (Cortella?), o que a gente precisa fazer para mudar tal situação é ficar empurrando, dando rasteira e sopapos nas pessoas boas. Só assim é que elas vão derramar, compartilhar suas bondades. Coitadas!

    O que percebo de bom no texto é que ele recomenda manter distância das pessoas más, desonestas, raivosas, mentirosas, negacionistas. Desse modo, fica explicado por que o Brasil está do jeito que está: estamos só dando empurrão em quem não presta.

    Não é isso?

    Etelvaldo Vieira de Melo