CRÔNICAS DO VÔ - O GAMBITO DO RAPOSÃO




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  • O GAMBITO DO RAPOSÃO

     

     

    Mar Zurg, Emezê para os íntimos, é um sujeito inteligente e criativo. E esperto. Você pode perceber isso olhando para seu rosto, onde os olhos giram de lá para cá, ora em busca de novidades, ora temendo levar um gambito.

    O termo gambito foi aprendido ao assistir a uma série de TV. Como não é usado com frequência, acho melhor explicar seu significado. A etimologia é simples: vem do italiano gambetta, que é o diminutivo de gamba – em português, “perna”. Ou seja: ao pé da letra, “gambito” é um jeito de dizer “perninha”. É um termo usado em xadrez e significa ardil, artimanha, “passar a perna”.

    Assim é Emezê: inteligente, inventivo, apreciador de um gambito. Nos últimos tempos, por exemplo, cuidou de fabricar um espelho grandão, muito esquisito. Quando ficou pronto, falou:

    - As pessoas, quando olharem para esse espelho, irão ser tomadas pelo sentimento de solidariedade. Isso porque quero contribuir para tornar o mundo melhor.

    No entanto, Emezê não disse que iria ficar bisbilhotando escondido, enquanto as pessoas olhavam pro espelho. E mais: que iria vender os direitos de espionar para empresas poderosas e governos corruptos.

    Não se sabe se por defeito de fabricação (por ter sido formado em sentido côncavo e não convexo) o certo é que coisas boas e bonitas, ao serem refletidas no espelho, tornavam-se horrorosas e mesquinhas. As cenas mais belas ficavam feias e deformadas, enquanto pessoas agradáveis pareciam cão chupando manga.

    As coisas iam de mal para pior, menos para Emezê e seus comparsas (logo, logo, Emezê se tornou uma das maiores fortunas do planeta).  Estragaram de vez quando decidiram levar o espelho ao alto de uma montanha para que pudesse refletir tudo que existe sobre a Terra. Quando chegavam ao destino, um dos carregadores escorregou numa folha seca fazendo com que o imenso espelho caísse e se espatifasse em milhões e milhões de pedaços. A força do vento fez com os fragmentos se espalhassem pelo mundo todo.

    E foi então que o espelho causou mais infelicidade do que nunca, pois alguns dos fragmentos eram menores do que um grão de areia. Quando um desses grãos entrava no olho de uma pessoa, ela passava a ver o mundo todo distorcido e feio, só enxergando o que havia de pior nas pessoas e coisas. Quando alguns grãos caíam no coração de alguém, aí o dano era maior ainda, com a pessoa ficando fria como pedra de gelo. Algumas peças eram grandes e podiam ser usadas como vidraça, e as pessoas não conseguiam ver os amigos através delas. Outras peças eram transformadas em óculos, o que era terrível também, pois aqueles que os usavam já nada viam de maneira justa e verdadeira.

    E o mundo se tornava cada vez mais sombrio e triste. Amizade e solidariedade parece que foram riscadas dos dicionários. As pessoas cultivavam um estranho prazer em falar mal das outras, espalhando mentira

    Tudo chegou a um ponto em que quase ninguém conseguia ver beleza e bondade. Olhando através dos fragmentos de espelho, o que cada um enxergava era a feiura, os defeitos e a ruindade. Até as plantas e os animais, ao se sentirem ameaçados pela gana destrutiva dos humanos, também passaram a responder agressivamente com secas, vendavais e doenças misteriosas.

    Alertados para o perigo de uma destruição implacável, os Onze Guardiões da Lei não se entendiam, eles que também tinham grãos do espelho alojados em seus olhos e em seus corações.

    Mas o final do ano se aproximava e com ele havia a esperança de que sentimentos bons pudessem ser novamente plantados nos corações dos homens. No entanto, isso só seria possível com a ajuda de Mar Zurg.

    Visitando a Terra por causa dos preparativos das festividades de passagem, o velho Nicolau, o Ninico, quis se encontrar com Emezê. Assim, ele falou:

    - Você, que disse querer lutar por um mundo melhor, precisa, primeiro, consertar seus erros. Afinal, “quem pariu Mateus que balance”.

    - Bah! – falou Emezê, fechando a cara feito jacaré de papo amarelo. Depois, acrescentou, usando seu senso de Lógica: -Você está falando errado. O certo é dizer: “quem pariu mantém e balance”.

    - Que seja.  Mas não fuja de suas responsabilidades.

    - Está bem. Vou consertar o estrago provocado pelo espelho, invertendo sua polaridade através de um programa. Mas faço um pedido para que as informações fiquem restritas; caso se espalhem aos sete ventos, podem perder a validade ou o alcance.

    E Emezê detalhou para Ninico um tanto de informações técnicas. O velhinho ficou coçando sua barba branca tentando entender todo o palavreado estranho. Traduzindo tudo para o jargão popular, teremos:

    O software de programa deve ser ativado por comando específico. Quando as pessoas estiverem trocando mensagens através de seus fragmentos de espelho, subliminarmente, no nível inconsciente, o programa irá perguntar:

    - O programa N-20 pede autorização para penetrar seu disco rígido e ali fazer alterações.

    As senhas “Natal”, “Ano Novo” e “Festas” irão liberar o acesso. Assim que qualquer uma delas for pensada ou pronunciada pelo usuário, o programa começará a operar.

    O que o programa irá fazer, basicamente, é eliminar sentimentos negativos de ódio, inveja, difamação, preconceito. Assim, a difamação se converterá em elogio; uma mentira irá se transformar em seu oposto, uma verdade; todos irão se preocupar justamente com a verdade, cada um assumindo seus próprios erros; racismo, homofobia, desprezo pelos mais pobres e desfavorecidos serão todos riscados dos dicionários e dos sentimentos. Enfim, as pessoas deixarão de buscar satisfação e prazer no ódio e na maledicência; o que elas irão querer será a harmonia com seus semelhantes e com a Natureza.

    - Ô, ô, ô! – riu Ninico, quase se engasgando de puro contentamento. – É disso que precisamos para o Ano Novo.

    Emezê também sorriu, mas seu riso parecia nervoso feito hiena, enquanto os olhos balançavam de lá para cá. E a pergunta que não queria calar era: estava ele sendo sincero ou preparava mais um gambito? O Ano Novo cuidaria de dar uma resposta.

     

    Etelvaldo Vieira de Melo