CRÔNICAS DO VÔ - HISTÓRIAS PROS TEMPOS DE PANDEMIA: UMA LEMBRANÇA QUE DÓI NO CORAÇÃO




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    HISTÓRIAS PROS TEMPOS DE PANDEMIA: UMA LEMBRANÇA QUE DÓI NO CORAÇÃO

     

    Quando falei pro Loprefâncio que acabara de comprar ingressos para ir com minha namorada à apresentação do Cirque du Soleil, ele olhou para mim como se não estivesse me vendo e, com voz trêmula, começou a falar dos tempos de sua infância:

    Nos tempos de antigamente, era comum que circos de picadeiro e de tourada, assim como parques de diversão, fizessem turismo pelas cidadezinhas do interior, onde chegavam se arrastando, tal a penúria de suas condições financeiras. Os circos de picadeiro podiam ser avaliados pela quantidade de remendos em suas lonas. Quando aparecia um com lonas novas, só tal fato era suficiente para que as lotações se esgotassem.

    Independentemente da quantidade de furos em suas lonas, a chegada de um circo ou de um parque era sempre motivo de comemoração, diante da perspectiva de algo diferente para uma cidade que vivia jogada às moscas.

    Os parques apareciam raramente. Como a entrada era livre, eu era frequentador assíduo e não me cansava de ver apostadores tentando laçar maços de cigarro com argolas, outros tentando acertar tiros ou bolachas. O máximo de emoção acontecia com a Roda Gigante e com gangorras em forma de canoas, onde duas pessoas se revezavam puxando cordas.  Às vezes, um puxava tão alto que passava a sensação de que iria cair lá de cima. O desejo proibido ficava por conta do carrossel, onde eu esgotava toda minha cota de inveja, vendo outros meninos girando em cavalos de faz-de-conta.

    Os circos de touradas eram ainda mais raros. Todos fracassavam, pois usavam bois das fazendas da região. Como nenhum tinha uma gota sequer de sangue espanhol, assim que eram colocados na arena, ficavam olhando calmamente para os toureiros e para a plateia. Não havia provocação que os deixasse enraivecidos. O vexame era inevitável.

    Quanto aos circos de picadeiro, como bem diz o ditado “em terra de cego, quem tem um olho é diferente”, aquelas pessoas estranhas, desde a chegada, eram vistas com curiosidade e deferência. Sempre havia um rapaz de belas proporções - em geral, um trapezista - a quem todos davam o direito de namoriscar a mocinha mais atraente do lugar.

    Quando o circo era de maior envergadura, seus principais artistas desfilavam em caravana pelas principais avenidas da cidade, assim que os mastros fossem fincados e as lonas levantadas, para dizer para a população que haveria espetáculo. E lá estava o palhaço e seu acompanhante anão fazendo graça para os meninos; lá estava o rapaz musculoso - certamente um trapezista - a arrancar suspiros das mocinhas; havia também aquela atriz de maiô e aquele atleta de short collant despertando  pensamentos sombrios em homens e mulheres; fechando o desfile – que surpresa, que aperto no coração! – vinha um leão enjaulado. Uma emoção indescritível tomava conta das pessoas.

    À noite, o som do serviço de alto-falante se espalhava pela cidade, anunciando o espetáculo. “Respeitável público, não perca, em instantes, o início do maior espetáculo que esta cidade já viu. Venha rir com as travessuras dos palhaços Mingau e Fubá, admirar a coragem do Homem Bala, passar pelo suspense do Globo da Morte, emocionar-se com o drama ‘O Céu Uniu os dois Corações’ e muito, muito mais!” E a sirene toca, em desespero, uma, duas, três vezes.

    E Loprefâncio completava: Lá de minha casa, eu ouvia tudo aquilo, com o coração doendo e umas lágrimas teimando em descer pela minha face. Eu me recriminava: Por que eu sou tão covarde? Por que não tenho a coragem de um Tonho da Biba, que sempre dá um jeito de entrar por debaixo da lona? Durante muito tempo, eu me sufocava, ouvindo músicas, gritos e risos. Depois, eu me consolava e adormecia com o pensamento de que, daí a uns dias, quando a população da cidade estivesse quase toda depenada, o circo iria promover uma matinê a preços reduzidos e, até lá, quem sabe?

    Quando, enfim, o circo deixava a cidade, nós, as crianças, cuidávamos de montar o nosso, geralmente debaixo de um bambuzal que havia no fundo do quintal de casa. Bambus eram utilizados para fazer a armação, enquanto a lona era de folhas das bananeiras. Certamente que tínhamos trapézio e palhaço, mas a atração principal ficava por conta de um primo que conseguia a proeza de deslocar o pescoço, igualzinho ao que fazia a moça do circo verdadeiro. Como eu não tinha nenhuma habilidade artística, ficava cuidando da bilheteria. Os ingressos eram folhas de pés de café. Ainda guardo uma toda ressecada dentro de um livro. Você quer ver, Ingenaldo?

     

               Etelvaldo Vieira de Melo