• Sudário

     

    Com certeza, o passado, já tão distante, até um pouco inebriado, vai se aproximando de nós sessenta ou setentões. No início, como pequena, mas persistente aragem, até gostosa de nela se ficar e depois, cada vez mais contínua, atual e dadivosa.

    As personagens que habitaram nossa infância permanecem vivas  tão  teimosas  para não serem esquecidas e, absurdamente, hoje, ficam ao nosso derredor, povoando nossas noites e sonhos, às vezes como bons fantasmas, ora como malabaristas, palhaços, saltimbancos do circo interiorano, E passam por debaixo da lona de nossa imaginação, da mesma maneira como fazíamos para não pagarmos o ingresso naquela única casa de espetáculo vivo que conhecíamos.  O mágico circo. Era só um de nós distrairmos os vigias e corríamos sorrateiros, abrindo o grosso pano que separava nossas curiosidades à dos espectadores que compraram sua entrada. Disfarçadamente, sob os olhos dos vigias que procuravam os “entrões”, batíamos palmas e ríamos como se nada houvesse acontecido. Às vezes olhávamos para outras pessoas como se elas tivessem feito algo errado. Um olho no picadeiro, outro na situação provocada.

    E ela, obstinada,  ressurge. Transitam dentro de nós personagens tão distantes e tão próximas. Dentre elas, o Sudário.

    Diferentemente do Joãozinho Dasmoça, tranqüilo, sorridente e amigo de todos, trabalhador, contador de casos e desinteressado de egocentrismo. O Sudário, no entanto, andava pelas ruas, com passos largos, apressados, falava sozinho o tempo todo, era egoísta e  a cabeça literalmente sempre erguida. Roupas sempre limpas, alto, magro e não suportava crianças. Ele nos atemorizava e nos queria longe.

    Era uma glória, aventura e prova de masculinidade, quando um de nós, conseguia chegar por trás dele e cutucá-lo. E depois era pernas para quem te quero. E a correria só acabava quando alguém nos socorria. Aquela aventura seria contada por todo canto.

    Não havia local, em Campo Belo, em que ele não estivesse presente. Era para nós, onipresente, bilocava, trilocava, sei lá, espalhava terror entre nós criançada.

    Se havia uma festa, lá estava o “penetra” Sudário. E ninguém se atrevia a mandá-lo embora daí. Olhava fixamente cada menino (com as meninas ele não mexia), como querendo dizer: “Te pego depois”.

    Nas barraquinhas, tão habituais na cidade, lá estava o Sudário. Depois da “matinée” do domingo, lá no cinema da Praça Cônego Ulisses em que assistíamos semanalmente o seriado do  Zorro ou John Mack Brown, novamente encontrávamos o Sudário, com seus olhos espertos, procurando um de nós para atacar. Ele ficava feliz em nos azucrinar.

    Agora... Tanto tempo passado, eis que...

    - Oi, Djeco!

    - Djeco?! Hummmmm (Este apelido foi sepultado há tanto tempo...)

    - Oi, Heleno! Já de cabeça branca?

    - E você careca, né? (na verdade não reconheci. Minha resposta foi surpresa até para mim que não costumo revidar ironias).

    - Olhe cá, Djeco! Cheguei até você através de um e.mail repassado. Hoje, com a internet, ninguém mais se esconde. Lá estava seu nome. Como existem poucos helenos... Imaginei que poderia ser você! Já estava pensando entrar no Google para encontrá-lo, como já encontrei diversos amigos de infância.

    - Filhos da mãe essas pessoas que não deletam nossos endereços quando repassam e-mails. Mas é você Windzgringaetz? Lá de Campo Belo, da Rua Tiradentes, não é?

    - Boa memória, meu caro!

    - Com um nome desses nunca poderia esquecê-lo. E tão vermelho... Seu nariz é sua marca, meu caro!

    - Pois é Djeco! Desculpe a familiaridade. Mas não dá para esquecê-lo. Você ficava com tanta raiva quando o chamávamos assim... Lembra-se?

    É claro, Windz!Afinal, como esquecê-lo? Você me deve 5 bolinhas de “gude”.

    ... E nos abraçamos a rir...Helenicamente!

     

    Heleno Célio Soares