ESCRITOS HELÊNICOS - FIGO DO SERTÃO




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  • Figo do Sertão

    - É! Eu estava lá pelos sertões das Gerais...

    - Então, pai, pra que lado?

    - A região dos sertões, Gui, tem cultura e natureza únicas. Um sotaque

    lingüístico bem mineiro. A vegetação é bela e ao mesmo tempo cruel. Árvores secas e retorcidas...

    - É bom ser filho de professor, né pai? Fala bonito e tudo explicadinho!

    - Vá ironizar sua mãe, ô Guilherme! Mas vamos lá! Estava em Januária, fica bem no norte de Minas. Lá também o Velho Chico, cansado e de águas lentas.

    - Dizem que a cachaça de lá é das melhores...

    - E é! Boa pinga carnes bem-tratadas de boi e de carneiro. E também, meu filho, muito peixe – que fartura -, doces de frutas regionais, biscoitos de fazer água na boca... Cuscuz e tapiocas.

    Era noitinha. Meu filho número três e eu conversávamos sobre assuntos

    relacionados ao trabalho, família, ética, política, o que já é comum entre nós. Aproveitar momentos de descanso para um bate-papo que nos aproxime cada vez mais. E isso acontece quase sempre nos sábados à tarde, até à noitinha, lá em nosso sítio, lá em Lagoa Santa. Enquanto isso, um banho de piscina, entre sorrisos e uma cervejinha gelada, e lá na grelha, o cheirinho gostoso do churrasco que já vai sair.

    É nesses momentos que contamos nossos casos. Eu, minhas viagens, tão comuns nos anos 1990, fazendo palestras pelas cidades de Minas e também recolhendo estórias do povo, hoje, uma coletânea de mais de duzentas. Se escutava estórias interessantes, inacreditáveis, aos pés dos fogões de lenha ou nas mesas de bares, também eu gostava de contar as minhas, tão mentirosas...

    Mas eu as fazia verdadeiras. Como me divertia e como ria e ria  helenicamente, observando os olhos atentos e crédulos, dirigidos ao professor de Sociologia vindo de Belo Horizonte,

    Havia também sempre alguém que fazia questão de me oferecer uma novidade alimentar. (Novidade para mim). Eu... Como eu gostava! Ao mesmo tempo em que refletia, com interesse, sobre a realidade e condições humanas tão presentes diante de mim.

    - Ô pai! De repente, você me parece tão longe... Tá viajando?

    - Devaneios, filho! Tô pensando no “Figo do Sertão”!

    - Hummmmmmmmm! Quê?

    - Pois é! Estava lá em Januária, na casa de Dona Cotinha, antiga diretora

    de um Grupo Escolar. É assim que se falava lá, ao invés de Escola Estadual

    ou Escola Municipal. O cardápio era frango caipira. Diferente, filho, desses

    frangos que se vendem hoje, que de pinto a frango só demoram quarenta dias. Isso nem é carne de frango. São os remédio e vitaminas que os fazem crescer e engordar depressa. Comércio... Comércio...

    - Credo! Já estou com nojo de frango. Nem mais vou comer aquelas asinhas que estão para sair... Mas... O cheirinho tá bom... Vamos ver...

    - E mais ainda! Amanhã, domingo, o cardápio aqui em casa é frango ao molho-pardo, com quiabo e angu.

    - Pelo amor de Deus! Mas, continue a história! Dona Cotinha...

    -Até hoje tenho saudade daquele povo tão hospitaleiro.

    - Saudade, pai, é da comida “zero oitocentos” que o senhor comia né?

    - De certa maneira sim! Que desejo forte de um dia voltar lá e comer a sobremesa que me foi oferecida. *Figo do Sertão*. Saborosíssimo!

    - Eu, igualmente ao senhor, pai, nada entendo de culinária. Mas, fale sobre esse diabo de "Figo do Sertão". E se souber a receita, escreva-a para mim. Eu a entrego a minha mulher Julianne... Ela entende tudo de cozinha... Prepara o doce para nós e pronto. Mata-se a saudade.

    - Não entendo mesmo! Guardo o sabor da boca, sabores históricos, meu filho! Vou enviar um E Mail para um amigo que tenho e ainda mora lá em Januária para ver se ele consegue a receita e a envie para mim, ta?

    - Vamos! Outro mergulho!

    E pulamos na água morna da tarde-noitinha de outubro. E como ríamos... como ríamos... Filho e pai. Saímos abraçados. Meu Deus, como isso é bom! Lá da janela, Cidinha nos olhava com seus olhos grandes e verdes.

    Alguns dias depois, abro meu E Mail e lá está.

    - Caríssimo professor Heleno. O tempo passa... E muita gente daqui anda se lembra de suas palestras tão a gosto do povo... E pedem notícias suas. Seu Carlão estava me contando do medo que você teve quando viu uma perereca na sua cama. Até hoje, eles falam: “O professor Heleno morre de medo de perereca”. E riem. Lembra-se de Dona Cotinha? Pois é!  Aquela famosa doceira e salgadeira, tão famosa em nossa cidade! Conversava com ela sobre a receita que você me pediu. Foi na casa dela que você comeu o "Figo do Sertão". Olhe só a resposta dela.

    - Fala pro professor Heleno que estou enviando pelo ônibus uma caixa do doce e uma cachaça das boas. Fala que eu agradeço a ele por haver ajudado meu filho Fernando aí na Capital e arrumado um emprego pra ele. Ah! Fale pra ele que Deus lhe pague. Ele vai encontrar, na caixa de doce, a receita do "Figo do Sertão".

    Três dias depois, recebi a encomenda. Reunimos a família para o almoço de domingo e logo após a sonhada sobremesa. E li solene a receita:

    Ingredientes:

    Um quilo de jiló.

    Um quilo de açúcar cristal

    Duas folhas de figueira

    Três copos americanos de água.

    Em um tacho de cobre, ferver o jiló com água. Retirar do fogo e, quando esfriar trocar a água. Deixar descansar por cerca de quatro horas antes de trocar de água novamente. Ao todo, serão três trocas por dia, durante três dias, ou até que saia o amargo do jiló. Após esse processo, pôr em um tacho, o açúcar, os três copos de água, o jiló e as folhas de figo. Levar ao fogo brando por quarenta minutos sem mexer. No outro dia, ferver novamente o mesmo tempo.

    Enviei a receita para meu filho e veio a imediata resposta:

    - Pai, pedi a Juliane para fazer... E até assim poderia ela estrear o novo fogão de lenha que fizemos na área livre de nosso apartamento lá no Buritis. Ela leu... Leu... Leu... E me respondeu assim:

    -Ah! É? Eu, três dias no fogão? Fale pro seu pai nos dar passagens e hotel que iremos a Januária buscar o "Figo do Sertão", tá?