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    Era um sábado, dia 28 de novembro de 2019, 17.03 horas e já me preparando para devorar a leitoa do Paulo Acácio, lá na casa da Cristina. Na expectativa de  que nosso amigo setentão não colocasse uma maçã na boca da donzela, senão perderia o apetite. É mesmo uma sacanagem fazer isso com a defunta. Ficar toda regateira, mesmo depois de morta e pronta para ser devorada pelos gustavenses e amigos.

    E já pensando no almoço, regado o vinho (quero também cachaça), estou me lembrando de algumas traquinices lá onde morávamos.

    Vou lhes contar. Volte ao tempo e lugar comigo. Pronto?

    Linha de trem. Sinuosidade. Calor forte. Não! Fortíssimo. Poucas crianças ali moravam. Cada uma mais traquinas do que a outra. Parecia campeonato de molecagem. Havia também as tímidas. Devem se arrepender até hoje, por causa disso.

    - Ô Benoni, chama o Zezé e vamos beber água da fonte.

    “Água da fonte” era nossa senha. Ninguém desconfiava. Nem o tio Zé, gerente do Curtume e que nos ensinava catecismo e quem aprendesse sempre ganhava uma bala.

    É claro, pois, que nos esforçávamos para sermos os melhores cristãos do mundo. Além de ganharmos o paraíso, como meu tio falava, nosso céu da boca ficava sempre adoçado. Valia a pena.

    - A Berenice vai ser nossa vigia!

     - Tá doido Célio, nós vamos nadar pelados! Ela não pode ir, nem ficar sabendo. É só nós homens.

    Éramos quase sempre um grupinho de quatro ou cinco. Seguíamos, procurando, como equilibristas de circo (éramos bem melhores), andar pelos trilhos. O primeiro que caísse era a “mulher do soldado”. Quem não caísse nenhuma vez, até chegarmos à estação Mascarenhas, antiga estação Riacho Fundo, tinha o direito de entrar primeiro na água. Era uma grande aventura. Bem maior do que, hoje em dia, esses “pivetes” “surfarem” em cima de ônibus. Éramos, sem dúvida, os “pivetes” daquela época. Só que éramos pessoas muito boas, obedientes, rezávamos todo dia, ajudávamos em casa, nem roubávamos muitas mangas dos vizinhos!

    A caixa dágua, ali, imponente, nos atraindo.

    - Não vou me esquecer nunca desse dia! Tantas vezes tinha dado certo! Por que também não hoje?

    É claro que agíamos sem pensar em consequências. A  não ser, nos divertir. Mas, naquele dia... Olha só!

    - Heleno! É  a  primeira vez que você ganha. Será o primeiro a entrar. Falou um do grupo, que nem sei mais quem é.

    A caixa dágua lá! Agora era subir. Depois... Bem! Levávamos uma corda. De fora, um dos companheiros, que falávamos “amigos” segurava quem entrava. Parte da corda amarrada ao redor da barriga, a outra parte, amarrada na ferragem. Portanto, não havia perigo. Mas... Se passasse alguém ali... Ai, meu Deus! A vara de marmelo ia se desgastar em cima de nossas costas.

    Vamos lembrar a estação Mascarenhas. Ficava dentro de uma fazenda, muitas, mas muitas mangueiras. Eram mais gostosas do que as mangas de nossa casa.

    Se o Paulo Acácio já foi lá... Num sei. Mas eu fui três vezes. E nessa última vez, passei um bruto susto e uma surra que dói em mim até hoje. Além da fuga covarde de todos que estavam comigo. Deve haver “amigo” correndo até hoje. Filhos da mãe, sô!

    - Sobe, Heleno! Tá com medo? Cê num é home não?

    - Amarre bem a corda, Benoni! Já vou entrar na caixa!

    Devagar... Um pé aqui, outro lá... Nada de olhar para trás, senão dá bambeira... Silêncio do pessoal... Já vem um ou dois atrás de mim... Enfim a caixa dágua! Aberta! É porque o trem não ia demorar... Ele bebia quase toda ela. Alguém poderia estar ali perto. (Um palavrão e logo depois o sinal da cruz para sermos protegidos. E... tibum.  O choque térmico nem era tão forte. A água estava sempre gostosa. Podia ser fria, em tempo de frio, ou morna ou quente no verão...mas sempre deliciosa.

    - Hei! Vocês não vão pular?

    - Se aguente aí, Heleno! O trem ta vindo... Esquecemos que hoje há um trem extra. Fica quieto aí. Ninguém vai te ver. Depois voltamos.

    Uiuiiuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiu!  Pxxxxxxiiiiiiiiiii! Xxxxuauuuuuuu!

    Parou. O filho da mãe. E começa a beber água... E não para... A caixa se esvaziando... E eu me segurando na corda para não ser tragado pela força da água que era puxada.

    Lá em baixo, o trem sedento continuava a tragar minha piscina. Comecei a gritar. O barulho do trem impedia quem alguém me ouvisse.

    Até que enfim. Foi embora. Mas eu já não estava sozinho. O chefe de estação e mais dois ferroviários tinham visto a corda.- Subam rápido!  Tem alguma coisa errada lá em cima!

    A coisa errada era tanta... Eu, lá encima, dentro dágua... Eu pelado... Minhas roupas que foram levadas pelos “amigos traidores”... O riso sarcástico dos dois ferroviários...

    - Vamos deixar o menino aí! Vamos chamar a mãe dele para vir buscá-lo vamos chamar a vizinhança... cobrar ingresso para quem quer ver menino pelado...

    E muitas outras zombarias.

    Vieram minha mãe, meu pai nervoso feito touro bravo, meu tio José Fonseca, que mais uma vez me protegeu da surra em público que meu pai me daria. Mas, eu não denunciei ninguém. Por isso apanhei por todos eles. Ah! Inesquecível vara de marmelo. Depois fiquei sabendo que todos eles também apanharam de seus pais.

    Deixaram de falar comigo por um bom tempo, pois achavam que eu os tinha denunciado. E logo eles... Os traidores da caixa dágua da estação ferroviária Central do Brasil de Gustavo da Silveira.

     


    ACIMA: A caixa dágua da antiga estação de Gustavo da Silveira ainda está lá, comida em parte pela ferrugem e sem função, e também  a antiga estação. 


     

    Heleno Célio Soares