• Debruço-me à janela, à minha janela.

    Só consigo observar o mundo

    a partir deste acidente geográfico

    privilegiado.

    Estando mergulhado no fundo do mar,

    aonde ainda não fui,

    ou nas alturas que escurecem as vistas,

    às quais tanto temo, ou tracejando

    livros com lápis N. 2,

    ou gesticulando desmesuradamente

    explicando.

    Enriquecendo o vocabulário com

    outras línguas.

    Preparando armadilhas ferozes

    para os inimigos do povo.

    Ou ainda junto só comigo mesmo.

    É a partir da minha janela que vejo

    o espetáculo e os espetáculos.

    Há muitas maneiras de alargar

    a janela, mas nenhuma completa.

    Nenhuma verdadeiramente eficiente.

    Os binóculos já vêm calibrados,

    os telescópios dependem das curvaturas

    dos espelhos e das distâncias dos mundos.

    Os estetoscópios da acuidade dos ouvidos

    que os usam.

    Os livros da inteligência e vontade

    de quem os lê.

     

     

    Todos os dias debruço-me à janela

    ( se é que em algum momento saio dela )

    e delicio-me com a paisagem.

    Acordado vejo estupefato, condescendente,

    apático, com raiva, misericordioso,

    intransigente, incendiário,

    apaziguador.

    Dormindo vejo sonhando, terrificado,

    prazeiroso, chorando, rindo

    a vida desenrolar automaticamente,

    por impulsão, por instinto, pela fé,

    pela razão, pela ciência, pelo amor,

    por ódio, pela loucura;

    tresloucadamente, caleidoscopicamente,

    fugindo a todas engrenagens,

    quebrando todos os protocolos,

    repetindo-se e se descontinuando,

    perpetuando-se e se renovando.

    A vida corre lá fora, longe

    da minha janela, lá embaixo

    ou bem lá em cima.

    E eu tenho a mesma onisciência de Deus

    ( presunção )

    mas não a mesma onipotência

    ( minha intervenção sobre os fatos

    se circunscreve muitas vezes no olhar ).

    E minha compreensão é estática

    em cada momento particular.

    Sou incapaz do verdadeiro dinamismo

    porque minha onisciência é falha,

    não conheço a próxima etapa e

    não sou as outras personagens e

    não posso prever a reação do Planeta,

    as trajetórias colidentes dos astros,

    os movimentos tectônicos,

    as rotas de colisões das opiniões

    e dos automóveis.

    E muito do que vejo é incompreensível

    sob toda as óticas e em qualquer

    janela do mundo que eu me debruçasse

    só mudaria a posição do espectador,

    não mudaria a realidade,

    mudaria apenas a parte que vejo,

    não mudaria o totum, a totalidade.

     

     

    Mas deixem-me estar à minha janela.

    Deixem-me aqui estar como quem quer estar.

    Às vezes fico como alguém

    que não pode ir a outro lugar.

    Minha janela, mágica é, dá-me

    visão do que já passei, do que passo

    e do que passarei.

    Tenho a partir daqui visões básicas,

    quadros intercambiáveis.

    Quadros que  se podem trocar

    sem alterar o fio da história.

    Para comodidade só se deve alterar

    a idade das personagens, pois há

    atitudes, gestos e caretas que

    pertencem a um determinado ano de

    vida da pessoa.

    O Homem não deve olhar para o seu

    presente, senão terá uma visão

    deturpada de si mesmo.

    O Homem é uma sequência fotográfica

    veloz, cinematográfica.

    Não deve ser tomado em movimento,

    mas não é quadro isolado,

    é um gesto sempre inacabado,

    uma sinfonia por se completar.

     

    Geraldo Felix Lima