PEREGRINO DA ESPERANÇA - ALBERTO ANTONIAZZI - MAURO PASSOS




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    A primeira chave da sabedoria é a interrogação assídua e

    frequente... É duvidando que se chega à investigação, e

    investigando que se chega à verdade.

    (Pedro Abelardo)

     

     

    1. A título de prólogo

             

    Lembrar...Recordar e rememorar. Provocar a memória. Selecionar fatos. Situar acontecimentos, conversas, reuniões. Seguir as trilhas de Alberto Antoniazzi – Amigo, Mestre, Religioso. Triangular experiências e vivências. Tudo isso inclui seleção, pois a  memória é seletiva. É importante enfatizar que nunca temos acesso à memória, senão às recordações. E isso é sempre uma reelaboração daquilo que realmente aconteceu. O futuro – passado de hoje, foi sempre maior, mais rico do que se pode imaginar. A memória é sempre mediação. Segue e revê/esconde muitas trilhas. A memória é uma forma de peregrinar. Além do mais, há fatos passados que constituem conflitos em potência para o presente.

             

    Com este trabalho espero contribuir modestamente para a homenagem que se presta ao Alberto Antoniazzi. O sentido maior do que selecionei está nos fragmentos de alguns escritos. Por isso, busquei alguns textos e uma excelente entrevista que ele concedeu em julho de 2004: “Memória e poder”. Optei, portanto, por um critério de seleção de fatos, experiências e concepções que se entrelaçam. Sua obra e seu pensamento requerem um estudo maior e mais sistematizado. Acredito que essa é uma tarefa para o futuro. Deixarei muita coisa de fora, evidentemente, pois não há tempo nem condições de abarcar tudo que está guardado, relacionado e escrito. É necessário também limitar o tema. Estarei privilegiando seu pensamento religioso. Em meio a esses procedimentos, recortarei trechos de entrevista, artigos e livros. Assim, pretendo que ele seja o protagonista desta escrita. Estabelecer um possível diálogo com esse pensador e deixar que seu pensamento nos fascine, incomode e atormente. Ele sempre foi um investigador erudito – reunia, classificava, questionava. Este texto é um convite para outro mergulho, em profundidade, em sua obra e, assim, partir para a construção de um outro texto. A página em branco, como afirma Michel de Certeau aguarda, diariamente, insistentemente a escrita do texto .

            

    A atuação de Alberto Antoniazzi foi muito significativa para o catolicismo brasileiro. Chega em Belo Horizonte no ano de 1964, em pleno período do Concílio Vaticano II. Época de grandes transformações no campo religioso católico. O cenário religioso brasileiro abrigou muitas mudanças, questionamentos e chega aos anos 70 com uma ousada reflexão e posição.Transcrevo uma observação feita por ele no livro de K. Rahner, Vaticano II:

     

    Fica nítido nesse período, o impulso renovador do catolicismo brasileiro. Movimento interno e externo revelador de busca de reconstrução da própria identidade e presença na sociedade brasileira. Momento para se repensar a vida e a atuação da Igreja à luz das grandes Constituições sobre a Revelação, a Liturgia, a Igreja, a Igreja no mundo de hoje. Nunca, talvez, na história, ocorreu tão sério exame de consciência, visando despojar-se de tudo a favor da pureza do evangelho. Onda de seiva vigorosa .

     

     

    Em vários encontros e palestras podia-se ouvir do Antoniazzi a referência ao Concílio. Para ele, esse acontecimento, por si só, era bastante significativo. Esse livro está cheio de observações, notas, citações de documentos. Era um leitor e estudioso de grandes expoentes da teologia e comentadores do Concílio Vaticano II. Em outra folha faz a seguinte observação: “Paulo VI traz duas novidades. Uma interna – a instituição do Sínodo dos Bispos e outra externa – a aceitação de visitar a sede da ONU, no XX aniversário de sua fundação”. Esses escritos já assinalam sua capacidade analítica de compreender cenários intra e extra-eclesiais.


    Em sua produção científica e intelectual, pode-se perceber uma grande relação entre história, sociedade, experiência vivida e religião. Suas reflexões sobre religião estavam sempre em diálogo com os aspectos sociais e culturais. Os sinais mais nítidos dessa aproximação estão nos seus últimos escritos. Era um peregrino da cultura. Seu percurso cultural demonstra que lia obras diversas – história, sociologia, economia, literatura, filosofia, etc. A Livraria Paulus, na PUC Minas, era sempre visitada, como também a biblioteca. Sua biblioteca é uma verdadeira história de vida. As obras que deixou e os registros de sua experiência constituem uma variada e rica fonte de informação. As anotações pessoais permitem outra leitura e se tornam, assim, uma fonte de estudo e pesquisa. Além dos livros assinava várias revistas, jornais e possuía um grande número de separatas. Lia (e falava) em várias línguas modernas, como conhecia bem o latim e o grego. Valho-me, neste momento, de uma citação de Larice Lispector que afirma: “Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho”. Era um leitor ativo e metódico. A presença e os gestos de Alberto Antoniazzi eram como coisa viva, atuante e dinâmica. Daí seu interesse por qualquer tempo – o de ontem e o de hoje. Buscava o humano em sua inteireza. Era alguém em busca do significativo. Essa era sua nota característica como professor, intelectual, pensador e religioso. Soube assimilar esse lugar movente e suas diferentes mediações. Conjugava  sua grande capacidade intelectual com disponibilidade para o serviço e simplicidade.

            

    Completando esse quadro, é importante afirmar que em seu ambiente de trabalho estavam fotos de família e outros objetos carregados de representação. Lembro-me que em fevereiro de 2001, mostrou-me a foto e um cartão de uma criança que sua família adotara. Sua mesa, computador, estantes, pastas compunham o seu trabalho. Compareciam no dia-a-dia para ajudar a recompor esse ambiente, como se estivessem aguardando seu dono. E, assim, com simplicidade hospedavam-no no silêncio.Na sua busca e na construção das palavras. O folheamento de vários significados seriam tecidos em palavras, artigos, projetos, pesquisas, livros e leituras.

            

    A esta altura, penso já ter indicado suficientes provas sobre esse jovem italiano/brasileiro. Estava sempre aberto ao diálogo. Forma de estreitar relações com o outro, o mundo, o diferente. Com um conjunto de qualidades humanas impressionava a todos. Conseguia revelar a densidade contida em suas idéias e em seus projetos. De forma especial, Alberto Antoniazzi projetou-se e tornou-se fonte para o estudo do catolicismo brasileiro. Isso se deu pelo seu empenho em construir um conhecimento capaz de historiar um período da Igreja no Brasil e instrumentalizar as idéias necessárias à aceleração do tempo. É uma figura marcante, tanto na Igreja de Belo Horizonte quanto em nível nacional. Nos últimos 30 anos, os documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) têm a força de seu pensamento. Para ilustrar esses dados, Alberto Antoniazzi faz o seguinte comentário em um trabalho que escrevemos juntos:

     

    A mentalidade religiosa no limiar do novo milênio não é mais a dos anos ´70 e ´80, que deram origem, no Brasil, a uma intensa renovação bíblica e litúrgica. Cresceram, nas pessoas, o individualismo, o subjetivismo, o emocionalismo. Enfraqueceu-se o sentido da história da salvação. Predomina, como critério determinante das escolhas religiosas, o gosto pessoal. [...] Daí alguns desafios para os nossos programas de evangelização. [...] Afinal, tudo isso não estará separado do esforço a que a Igreja é chamada hoje (e sempre mais no futuro) a fazer, testemunhando a mensagem evangélica na plena fidelidade à pessoa de Jesus e ao projeto de Deus, mas de forma e com uma linguagem que a torne significativa para as novas gerações e a nova cultura, pluralista e dinâmica, que o início do Terceiro Milênio cristão anuncia.

     

     

    Mais que julgar, ele tenta interpretar o tempo presente, resultante de condicionamentos e da vontade e poder de ação das pessoas. Procura entender o social e o cultural e a influência que exercem na experiência religiosa.

     

    2. Nas trilhas do peregrino

            

    As reflexões e o pensamento de Alberto Antoniazzi são, pelo conteúdo e pela metodologia, referência para quem trabalha no universo religioso hoje e para quem se interessa pelo estudo do campo religioso católico brasileiro. No entanto, ele transita em outras áreas com sabedoria e domínio de conteúdo. Em 1981, profere uma palestra num Curso de Extensão sobre Filosofia no Brasil, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Trata da “Filosofia de inspiração cristã no Brasil contemporâneo”. É uma sucinta indicação de rumos, nomes, livros que podem orientar uma pesquisa em maior profundidade. Analisando o pensamento filosófico brasileiro afirma:

     

    João CRUZ COSTA escreveu, algum dia, que ‘o neotomismo encontrou, como era de esperar, campo fácil para fácil vitória’. A vitória parece a mim mais quantitativa do que qualitativa. De qualquer forma, no período que pretendemos considerar (1930-1980), não se pode falar de pensamento católico sem falar em tomismo (ou neotomismo). Diria até que os dois se identificam [...] Como manter viva, no século XX, uma filosofia profundamente ligada à cultura do século XIII? Que significa ser fiel a Tomás de Aquino? Fidelidade à letra ou fidelidade ao espírito? Repetir suas doutrinas ou renovar hoje sua «intenção»? Tomás de Aquino apareceu a seus contemporâneos (particularmente a seu primeiro biógrafo, Guilherme de Tocco) como um inovador, como alguém que «tratava novas questões de maneira nova, com métodos novos...». Tomás de Aquino dialogou com a ciência e a filosofia mais avançadas de seu tempo. Ser discípulo dele poderia ser confundido com a adesão a um conservadorismo intransigente ?

     

    Sua análise é um convite à reflexão. Analisa, de forma clara, o encontro do tomismo com o pensamento filosófico contemporâneo. No desenvolver de sua argumentação analisa a importância do impulso dado por Teillard de Chardin e Mounier para o pensamento contemporâneo. Destaca o significado de uma participação consciente na construção da sociedade e da cultura atual.

            

    Hoje vivemos um momento de maiores transformações da sociedade. São, inclusive, mais visíveis. Mais fáceis de serem observadas. Trata-se das transformações atribuídas à modernidade ou à modernização da sociedade. Este é um processo que começou lentamente há alguns séculos, mas se acelerou nas últimas décadas e, mais ainda, nos últimos anos. É um processo que envolve o mundo todo, embora em medida diferente. No Brasil, está bastante avançado, com repercussões no interior, onde chega tudo o que pode ser vendido longe. Refletindo sobre essas questões, Alberto Antoniazzi faz o seguinte comentário sobre a sociedade contemporânea e o projeto de vida para a juventude:

     

     

    Contemporaneamente, aumentou a pressão da sociedade sobre os indivíduos. A nossa sociedade promete liberdade, mas depois não dá condições efetivas para realizá-la. No caso brasileiro, isso é muito evidente no plano econômico. [...] A liberdade política também diminuiu. Pode-se votar por qualquer partido político, mas os programas políticos são sempre mais parecidos uns com os outros. [...] Há mudanças mais sutis do que as mudanças externas na sociedade. São as mudanças que afetam nossa mentalidade, nossa maneira de ver e avaliar o mundo, a própria estrutura da personalidade. Está mudando, por exemplo, a concepção do tempo e do espaço. A nova geração tende a viver só no presente, pois não tem memória do passado e não consegue enxergar o seu futuro, que se tornou demasiadamente incerto. A falta de referência ao passado, à memória da comunidade humana em que cada um, bem ou mal, está inserido, tira qualquer referência e a própria possibilidade de os jovens fazerem projetos, sobretudo projetos coletivos. Arriscam-se a viver segundo o gosto do momento, levados pela última novidade que conseguiu atraí-los ou seduzi-los. [...] Também o espaço muda. Na sociedade pré-moderna o espaço era constituído por “lugares”, cada um dos quais tinha um sentido próprio e particular. Eram diferenciados entre si e ajudavam as pessoas a definir sua identidade e sua história. Hoje também o espaço tende a se tornar homogêneo, indiferenciado. Coloca-se no mesmo plano a igreja, a escola, a casa, o lugar de diversão. A TV torna tudo igual, tudo acessível da mesma forma, tudo “imagem” .

     

    Este texto pretende a ser um convite à reflexão e ao diálogo com a liberdade que se apresenta para o jovem contemporâneo. Esta proposta cativa precisa ser iluminada pela esperança, para que o jovem seja livre e operante. Nessa mesma linha, ele faz uma séria observação sobre a catequese hoje:

     

    Os anos 1981-83 trazem em cena a discussão do projeto que viria a ser o documento do episcopado brasileiro “Catequese Renovada” [...] Hoje os temas da discussão, para desenvolvermos uma catequese adequada e atualizada, “à altura dos tempos”, seriam outros. A preocupação principal, para se pensar uma boa catequese e – mais amplamente – a educação religiosa de crianças, jovens e adultos, deve ser a de entender a profunda transformação que está se realizando na relação entre a pessoa e a sociedade e, por conseguinte, na “socialização” [...]. Trata-se de ajudar na construção de pessoas verdadeiramente livres. A nossa sociedade promete liberdade, mas não dá condições reais para ela. Sobretudo não ajuda a nova geração a descobrir um sentido para a vida. Só promete satisfazer “necessidades” (fome de pão, fome de amor, fome do belo, mas também do luxo, da comodidade, do status...). A catequese e o testemunho da comunidade cristã devem ajudar as pessoas a descobrir a verdade – não apenas a realidade imediata, mas a Verdade que dá sentido à criação e à vida. A catequese tem, como nunca, o programa do Evangelho de João: “a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32) .

     

    Nessas reflexões, Antoniazzi é mais realista. No entanto, não deixar de mesclar a utopia, quando aponta possibilidades de reação e emancipação do indivíduo. Indica o futuro, sem perder de vista a história, a realidade. No fundo espera por uma mudança para melhor. Uma sociedade mais humana e onde todos tenham lugar.

             

    Nesse jogo de valores e antivalores da modernidade, aponta pistas de futuro para a experiência religiosa. Sua pesquisa sobre as religiões no Brasil cruza diversos dados, interpreta o sentido das mudanças de religião, confronta diversas análises. Numa perspectiva histórico-cultural, faz uma análise das religiões no Brasil, a partir dos dados do Censo de 2000 . Juntamente com o CERIS organiza uma vasta pesquisa sobre os desafios e dilemas do catolicismo nas cidades . Sua análise constata uma queda no número de católicos e contesta a afirmação de que o país esteja menos religioso. Faz uma importante observação sobre as perspectivas pastorais para o catolicismo:

     

    Nos últimos anos, cresceu o nosso conhecimento da realidade socioreligiosa das grandes cidades. A reflexão e sobretudo a ação pastoral,porém, ainda não cresceram na mesma medida. [...] O pluralismo religioso e a complexidade da sociedade urbana exigem também, muito mais do que no passado da civilização rural, pouco diferenciada, que a Igreja procure investir na formação de pessoal especializado. Só este pode atuar “profissionalmente”, com competência, sem amadorismo e improvisação, especialmente naqueles aspectos da vida urbana e eclesial que a paróquia não pode assumir. Já dissemos que o campo da comunicação de massa. [...] Um outro investimento, já feito, mas pouco explorado, é o das Universidades Católicas (ou de instituições de pesquisa, como CERIS ou INP). [...] Um bom critério de investimento na formação pessoal é procurar investir no essencial, naquilo que é realmente relevante para a missão da Igreja na sociedade (respeitando a “hierarquia das verdades”). Mas sobretudo é importante investir em lideranças com capacidade inovadora. O grande perigo da nossa ação pastoral, especialmente nas paróquias, é que ela seja sufocada pela rotina, que cansa e esgota os presbíteros .

     

    Em vários estudos, lembra que a formação católica, hoje, deve considerar a realidade de um mundo religiosamente plural. Há muitas propostas religiosas e neo-religiosas que convidam os líderes, particularmente, a estar em vigília de preparação. A revista “Vida Pastoral” (Revista bimestral para sacerdotes e agentes de pastoral), da Editora Paulus, publicou nos últimos anos diversos artigos do Alberto Antoniazzi sobre esse tema.

            

    Hoje há um despertar sobre a ética. Um renascimento sobre esse tema nas diversas áreas do conhecimento e na vida pública e política. Também nessa área deixa sua contribuição:

     

    A estreita relação entre ética e democracia tem como fundamento o fato de que o agir só pode ser autenticamente ético quando pressupõe o reconhecimento mútuo dos sujeitos (i.e, das pessoas humanas): cada um reconhece o outro como portador dos mesmos direitos. Não é exagerado dizer que a democracia é a expressão da ética no nível da política. A afirmação pode parecer estranha, em nosso contexto atual, porque na realidade poucos são os que acreditam numa ética universal. A opinião predominante é a do relativismo ético. [...] Mas esse relativismo ético, apesar de amplamente difundido, é intrinsecamente contraditório.[...] Com isso não afirmamos que a ética, ou a convivência democrática, se constroem apenas a partir de princípios universais, universalmente válidos. O universal é só um ponto de partida: ele deverá se expressar no particular, no concreto, na história. A ação humana sempre terá essa dupla raiz e sempre nascerá da tensão universal x particular .


    A partir de 1990 dedicou-se ao Projeto Pastoral “Construir a Esperança”, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordenou e abriu várias frentes de trabalho, orientou diversas pesquisas para que a ação da Igreja Católica conhecesse a realidade plural da cultura urbana. O objetivo era a vontade de realizar uma nova evangelização que revitalizasse as comunidades eclesiais, prestando, assim, serviço à sociedade, ao povo, sem distinção ou discriminação. Segundo ele: “Essa vontade nasce da consciência de que a sociedade está mudando e espera, também, por parte da Igreja, dos católicos, uma nova resposta e um novo empenho” .


    Em diversos estudos tratou da presença do catolicismo nas culturas. Soube considerar a cultura e a religiosidade popular. É significativo pontuar que acentuava a importância da solidariedade e do respeito diante da pluralidade cultural. Em um estudo de 1976, sobre Evangelização e cultura afirmou:

     

    Só a solidariedade real para com o povo evitará que a intromissão do estranho seja vista com receio, como de alguém que veio para dominar, instrumentalizar, escravizar. Esta solidariedade implica em assumir efetivamente, até o fundo, as condições de vida do povo, suas aspirações, suas lutas. De outra forma, não haverá abertura. Mas como testemunhar essa solidariedade e essa confiança, se – nas condições de cidadão de segunda classe, de estrangeiro sem direitos políticos, que nunca é chamado a participar ativamente das decisões nos assuntos que o afetam, poderá o povo se sentir realmente dentro da Igreja e a Igreja dentro dele? Parece necessário aqui recordar a questão das estruturas da Igreja, da organização dos ministérios. Concretamente – hoje, no Brasil – qual é o poder real do laicato na Igreja,sua possibilidade efetiva de atuação.


    Passados 20 anos, no V Congresso Missionário Latino-Americano do COMLA, em Belo Horizonte, Alberto Antoniazzi coordena um grupo de estudos sobre “Evangelização e culturas urbanas”. Considera novas questões em sua análise, no entanto, reforça a importância da solidariedade:

     

    Nesse contexto tão complexo e dinâmico, como é o das grandes cidades, que formas assume a presença da Igreja e sua ação evangelizadora?[...] A presença da Igreja se manifesta na periferia e não através de construções monumentais, mas através da solidariedade com os marginalizados e os excluídos. Neste sentido, foram exemplares as experiências de evangelização apresentadas no início dos trabalhos sobre ‘Evangelização e culturas urbanas’. Uma testemunhou o trabalho com o ‘povo da rua’ de São Paulo, o povo – como diz um deles – que tem por casa a própria rua. Outra de Assunção (Paraguai), junto a uma população às margens da grande cidade, que recebeu uma moradia precária do governo, mas no apoio solidário da Igreja encontrou o caminho para a esperança e a luta pela sobrevivência. As experiências entre os ‘excluídos’ estão carregadas de esperança, a mesma esperança que em todo cristão evoca o acontecimento de Belém, o menino Jesus deitado na manjedoura, à margem da cidade que não teve lugar para ele. Desse pequeno e escondido acontecimento nasceu a mudança que transformou o mundo e alimentou nossa fé e nossa vida até hoje. [...] Mas quais são os passos para construir a ‘nova cidade’? Quais são os passos através dos quais grupos de cristãos saem do seu pequeno mundo paroquial, muitas vezes construído ainda sobre modelos rurais ou pré-modernos, para estar presentes no dinamismo da cultura urbana contemporânea ?

     

    Outras temáticas tiveram  a dedicação, o estudo e a pesquisa de Alberto Antoniazzi. Não teve medo de conjugar o religioso com os diversos temas, teorias e questionamentos do mundo contemporâneo. Nesse contexto cultural dinâmico, soube abrir-se à questão da diversidade e conduzir o pensamento religioso para o centro das discussões. Os documentos da CNBB nos últimos 30 anos comprovam esse fértil diálogo.

     

     

    3. O teatro da memória: as sementes nas veredas da vida e da fé

            

    Alberto Antoniazzi traz de longe um pensamento de vanguarda. Transcrevo algumas reflexões que faz sobre diversos assuntos, particularmente, sobre religião, catolicismo e Igreja, na entrevista “Memória e Poder”. Trata-se de questões não somente novas, mas fundamentais. O futuro/passado de muitas questões está em nossa busca. Há muito percorria terras polêmicas e regências agitadas da teologia, da história e da pastoral. Oscila em um universo a que, ainda, não nos aventuramos. Trata de temas que não estão circunscritos em compêndios ou ensaios. Estão em outro lugar. Rememora, avalia e atualiza diversas questões. É justamente essa “formatação”que os fragmentos do depoimento transcrito abaixo retratam. O espaço de um depoimento desencadeia um processo de reordenação, releitura de temas. Contribui, assim, para o afloramento de visões que ficaram na sombra. Retoma nesse depoimento um passado que, paradoxalmente, se faz novo. Cria no espaço da memória pontes para a plataforma do hoje e de um futuro a ser construído. São silêncios prenhes de sentidos. Uma história que deve prosseguir.

    Sua militância religiosa já se manifestava na década de 1950, em Milão. Ali iniciou suas atividades como membro da Ação Católica. Uma forma nova de presença da Igreja na sociedade com diversas formas de ação e atuação – política, educacional e social. Essa atividade estendia-se no trabalho dos estudantes da Universidade Católica de Milão onde fez sua graduação e pós-graduaçaõ. Revela em diversos momentos a jovialidade de seu pensamento social, político e religioso.

     

    Ação Católica e opção sacerdotal

     

    Antoniazzi: A Ação Católica foi um movimento de ação dos leigos bastante forte, tanto no aspecto social, político, educacional quanto no aspecto religioso. Fui Presidente Diocesano dos Jovens e redator do Jornal da Arquidiocese de Milão. Visitei mais de 900 paróquias. Nesse período trabalhei com Mons. Montini, futuro Papa Paulo VI. A paróquia em Milão era um espaço de acolhida. Lugar de diversão, esporte e catequese. Não fui como muitos meninos que fingiam ser padres e brincavam de celebrar missa numa cadeira. Minha motivação era mais apostólica do que sacerdotal. A decisão de me tornar padre foi uma continuação do meu trabalho na Ação Católica. Aceitei o celibato porque não tinha outra opção para me tornar sacerdote. Hoje muitos formadores afirmam que o padre vai amar todo mundo. Em parte é verdade, mas não resolve o problema. Eu achava ruim ter que vestir uma batina preta e, assim, ser diferente dos outros. Ainda bem que hoje essa preocupação com a exterioridade não é forte na Igreja.

     

    Os leigos na Igreja

     

    Antoniazzi: O Concílio Vaticano II retomou o lugar do leigo na Igreja. O significado está na concepção de Igreja como “Povo de Deus”. Valoriza a dignidade de todos pelo Batismo. No entanto, ainda há padres que não aceitam muito o Vaticano II. Não valorizam a comunidade cristã. O Santo Padre Pio X dizia que a Igreja era uma sociedade de desiguais e as ovelhas devem seguir o pastor. No entanto, o Concílio traz uma nova reflexão sobre eclesiologia. O ministério sacerdotal é um ministério apostólico que deve servir a comunidade e organizá-la. Sua função não é apenas sacramentalizar. Há um sacerdócio comum na Igreja e o Povo de Deus é o verdadeiro protagonista. A Igreja ainda não valoriza tanto o leigo. Há padres que pensam ter um bom relacionamento com os leigos, no entanto, não se preocupam em escutar. Têm medo das críticas. Estão mais acostumados a ser aplaudidos.

     

    A Igreja, a ditadura militar e a polítca

     

    Antoniazzi: Em 1964 a ditadura militar não foi acolhida com entusiasmo no Seminário Coração Eucarístico. Havia um grupo de seminaristas bem politizados. O golpe militar ajudou a tirar de Dom Hélder da liderança da CNBB. Outras fatos aconteceram. Os bispos foram retirando o apoio à Ação Católica. Muitos militantes saíram da Igreja e fizeram uma resistência mais radical. Vários Inquéritos Policiais Militares foram feitos contra a JOC, o Instituto Central de Filosofia e Teologia e um grupo de padres que assinaram um manifesto contra a morte do estudante Edson Luís, em 1968. Em 1973 a Declaração dos Direitos Humanos completava seus 25 anos. Nessa década saíram importantes documentos de alguns regionais e da CNBB, como “As exigências cristãs de uma ordem política”, a favor da redemocratização do país. Nesse período ocorre a volta de dirigentes progressistas na CNBB.

     

    Desafios atuais para a Igreja Católica

     

    Antoniazzi: Muitas questões novas desafiam a Igreja – o diálogo inter-religioso, a justiça social, o problema interno da Igreja – a descentralização e sua inserção no contexto social, o subjetivismo religioso. Estamos em um momento de fragmentação religiosa. Há estilos diferentes de atuação. Há muitas Igrejas Evangélicas, mas são diferentes entre si. Muitas Igrejas têm uma política clientelista em busca do poder. Funcionam como no jogo de futebol, vende para quem dá mais. Estamos em um momento em que vai aumentar o número de pessoas com uma escolha religiosa mais pessoal, corajosa. Não coloco a Igreja como referência suprema. A referência suprema é Jesus Cristo. Assim como há os “Sem Terra”, “Sem Casa”, hoje, temos também os “Sem Religião”.

     

    Evidentemente que o que aqui está transcrito não esgota os temas abordados. Alberto Antoniazzi tem uma vasta literatura a respeito deles. Nesta revista há uma coleção de artigos publicados por ele. Há-de se destacar as ricas pistas de análise que sempre ofereceu para uma compreensão das mudanças que ocorriam no cenário religioso.

     

    4. À guisa de conclusão: uma história que prossegue


    Quero concluir esse trabalho, buscando no romance de Goethe, “Afinidades eletivas”, a imagem que o intenso trabalho de Antoniazzi representa. Por isso, prossegue, pois sua marca alterna entre saber e dedicação, conhecimento e responsabilidade. Ao lado da disciplina científica teve a sensibilidade para captar o real em sua profundidade.


    Segundo Goethe, na construção de uma casa há diferentes decisões, diferentes momentos e diversos trabalhos. O alicerce e a construção das paredes são obras do pedreiro. O acabamento é resultado de um trabalho coletivo – pintor, paisagista e decorador. O pedreiro faz seu trabalho a céu aberto. Pó, massa, sol e chuva povoam seu dia-a-dia. E isso ficará escondido, pois somente o acabamento será visto pelas pessoas. Pintor, paisagista e decorador deixam na sombra a ação do pedreiro. Os amigos e conhecidos sempre elogiarão a escolha da cor, o jardim que decora a entrada da residência e os detalhes no interior da casa. No entanto, existe um trabalho escondido, resistente e sólido. Por isso, os moradores se assentam e repousam com a confiança e esperança de um peregrino...


    A herança de Alberto Antoniazzi servirá de alicerce sólido ao processo de criatividade para o aprimoramento da cultura, da esperança e de novas formas de ser religioso. Continuar a viagem da esperança...

     

     

    Prof. Mauro Passos

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

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