ESCRITOS HELÊNICOS - BOLO DE NOZES




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    Novamente a janela aberta. Toda ela não. Só uma parte. O lado direito de quem, possivelmente, estava dentro do casarão.  Eu passava toda manhã, aliás, descia aquela ruela, meio escura, com cheirinho da neblina, tão característica de Mariana. Era muito cedo para abrir janelas. Ainda mais no mês de junho e julho. Quase que pontualmente, às 5h 50 min da manhã.

    Caminhava, geralmente, assoviando baixinho ou cantarolando para o meu trabalho. Ia a pé e olhava sempre a janela. Que ficava curioso, ficava! Um dia, uma flor vermelho-laranja estava depositada ali. Sem vaso, sem nada.

    Outro dia... Somente uma toalha branquinha e uma pedra de cristal, possivelmente para o vento não deixá-la cair.

    - Qualquer dia vou saber quem é o doido ou a doida quem mora aí.

    E continuava minha caminhada tranquila, mas já ficando curioso com as pequenas novidades na janela da casa do meio da rua. Outro dia... Um livro... Depois... Uma xícara com pires e até pedaço de bolo ou sei lá o quê. Mas... Ninguém lá.

    - Se eu passar aqui e estiver com fome... Sei não... Viu?

    A outra semana passou silenciosa e a janela ficou fechada. Éramos eu e a janela. Era aprendiz de escultor. Madeira. Fazia anjos barrocos e aprendia rápido.  Tinha um mestre paciente e exigia que eu estivesse lá às 6h00 horas da matina.

    - De manhã, a criatividade é maior e também a disposição para o trabalho, Conae! (Ah! Esqueci-me de dizer que este era meu apelido. Por que motivo nunca soube).

    Era uma quarta-feira. Claro que me lembro. As duas bandas da janela estavam abertas e uma figura feminina, sorriso não alegre, e nem tão triste, talvez até misterioso contemplava o céu eivado de nuvens que nem deixavam o sol sorrir.

    - Bom dia! Tá frio, heim?

    Nenhuma resposta, a não ser o olhar e o rosto envolvidos pela névoa que se dirigia a mim. Talvez até houvesse havido um aceno. Fiquei confuso, para não dizer sem graça e apressei os passos acompanhados pelo pulsar do coração, um pouco mais rápido, e até me dizendo: - Conae, você é bobo, sô!

    Havia ansiedade para esperar a quinta-feira. E ela passou, também a sexta e nada. Janela fechada. Olhei dez vezes para trás. Só dez?

    Na outra semana, estive com febre e não trabalhei. Foi até exigência do Seu Amâncio.

     -  ”Quero gente sadia para trabalhar comigo, rapaz! Primeiro se cure!”

    Alguns dias depois, recuperado, bem disposto, até de calça e camisa novas , sapato não, seguia o mesmo caminho. Desta vez, acompanhava-me meu irmão  mais novo, de doze anos, pois minha mãe insistira em ele ir comigo.

    - Mamãe é puxa-saco seu, né, Conae? Eu tenho que ir com você, para ela ter certeza de que você está bem.

    - Ora, Xandinho, acho que ela quer é que você vá também tomando gosto pela arte, já que não gosta de estudar.

    - Num enche o saco!

    - Escuta!  Está ouvindo?

    - Estou! Que som lindo! Mas tão cedinho assim...

    - Vem lá da casa da...

     - Da... quem?

    - Ô Xandinho! Aquela casa ali. A janela quase sempre está aberta. Pelo menos um pouco. Hoje não! Mas o som do piano é de lá. Ah! Se é!.

    - Bonito mesmo. Num entendo de música. Mas acho que é o que chamam de “clássica”. Vamos parar e ouvir um pouco?

    - Tá! Mas não podemos nos demorar.

    Outras vezes, isso aconteceu. Agora ia novamente só para o trabalho e comentava com o Seu Amâncio que ouvia calado e seu olhar redondo pregado nos meus olhos... O que me deixava sem graça.

    Aprendi até a solfejar uma das canções que a menina-moça, tão clara e delicada tocava. E continuava meu caminho ao som e ao assovio do que ouvira.

    Sua figura, de quando em vez, aparecia na janela. Não havia nada mais que um sorriso. Um dia percebi um aceno de mão. Aproximei-me, mudando de calçada, mas ela entrou. Será que era ela mesma quem tocava o piano? Podia ser sua mãe ou até outra pessoa. No entanto, quando ela estava na janela, o piano silenciava.

    - Era ela sim!

    Dia 28 de julho. Não vou esquecer esta data. Era tardinha! Mais ou menos dezoito horas. Nunca a havia visto nesse horário, nem a janela aberta. Se me intrigava... Isso é claro! Nesse dia, ela estava na janela, sorrindo, tão linda... E eu tão sem graça, com  meus dezenove anos inexperientes. Levantou a xícara, como se me oferecesse e apontou para o prato que descansava no parapeito da janela, dando-me sinal para aceitar o convite para o lanche. Senti o cheiro gostoso do chocolate e o vapor que subia, dizendo assim: “- Estou quentinho!”

    Fiquei sem palavras, agradeci com um aceno e fui embora. Esperei com ansiedade o outro dia. Ela não estava mais na janela... O som do piano sorria dentro da casa e eu ouvia feliz, como nos outros dias que se seguiram.

    Nunca tive coragem de conversar com ela ou perguntar quem era... A timidez algumas vezes me protegera, outras, me tiraram oportunidades. A música sempre ali naquele horário. Às vezes a menina-moça na janela. Agora, quase sempre com uma fatia de bolo nas mãos convidativas e me oferecia com um amável gesto. Agradecia envergonhado e a via sorrindo, um sorriso tão diferente...

    Seu Amâncio mudou seu ateliê lá para lados da Igreja de Santana. Do outro lado da cidade. Assim, também meu itinerário e por muito tempo não mais passei pela Rua Direita, que era a mais curva de Mariana.

    Um ano depois, me parece, numa festa de estudante, comentei com alguns amigos o fato. Um deles, o Miltinho, apelidado de Jaleco Branco (sempre gostava de andar de branco e dizia que queria ser médico... namorador e mulherengo me disse):

    - Amanhã, vamos lá. Se você tem medo de mulher, então deixa comigo. Quero ouvir a música dela e comer deste bolo que ela faz.

    - Mas, Jaleco Branco, num tenho coragem de...

    - Deixa pra lá! Vamos! E o resto é comigo! Se o pai dela for bravo, digo que fomos lá para arrumar o jardim... Se ele permite... Você mesmo não disse que o jardim está com muito mato? Deixe comigo, Conae!

    No sábado que se seguiu fomos lá. Mais ou menos dezesseis horas. Casa totalmente fechada. Perguntamos a uma vizinha.

    - De quem é essa casa? Quem mora aí?

    - Eu tomo conta da casa. Está há muito tempo à venda. Querem vê-la?

    Aquele “muito tempo” me assustou, mas Jaleco Branco me cutucou e fiquei em silêncio.

    Dona Jacira pegou as chaves e fomos ver. Entramos. A casa estava limpa, bem cuidada. (Parabéns, Dona Jacira!) E ficamos em silêncio, olhando os cômodos.

    Ali, lado contrário da janela, onde eu via a jovem moça, um piano. Aproximei-me curioso. Em cima dele, uma tigela, a mesma que eu vira com ela. Um guardanapo branco e um pedaço de papel com uma receita. Peguei-a, disfarçadamente e coloquei-a em meu bolso. Meu colega percebeu, pegou-a e leu-a em bom tom.

    “Bolo de Nozes”

    Ingredientes

    3 (três) ovos

    3 (três) colheres de sopa de margarina

    1 (uma) xícara de chá com leite

    1 e meia xícara de chá com açúcar

    250 (duzentos e cinqüenta) gramas de farinha de trigo

    1 (uma) colher de sobremesa de royal

    2 (duas) colheres de sopa de mel

    1 (uma) pitada de sal

    1 e meia xícara de nozes

    Cobertura

    2 (duas) xícaras de chá com açúcar

    5 (cinco) colheres sopa com  leite

    Levar ao fogo para ferver até virar calda, por dois minutos (sem deixar a calda ficar branca) e jogar no bolo quente.

    E embaixo da receita:

      - “Para você, meu amigo, que me vê toda manhã antes das seis horas”.

    Sorri, envaidecido para o meu amigo e perguntei à senhora que nos mostrava a casa.

    - Ela se mudou? Para onde? Que gentileza deixar para mim esta receita.

    Dona Jacira não conseguia abrir a boca e nem fechar os olhos negros arregalados. Ficou estática. Puxou-nos para fora. E lá... tremendo, foi logo falando.

    -Ela... Ela... E seus pais morreram há dois anos.

    Pergunte-me, caro (a) leitor (a), se eu como ‘Bolo de Nozes”...!

    Heleno Célio Soares