FOI NOSSA SENHORA QUEM MANDOU - IVANI CUNHA




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    Eram seis crianças – três meninos e três meninas, sendo uma delas de colo –, uma “escadinha” de dois a 14 anos. Moravam numa casa de adobe, porém construída com capricho, pelo próprio pai delas, num terreno abaixo do nível da rua e inclinado para o fundo. Caso o homem tivesse algum recurso, certamente teria aproveitado melhor essa topografia, mandando terraplenar a parte inferior do lote. Em seguida levantaria pilastras, estenderia vigas e assentaria sobre elas uma laje, o que lhe possibilitaria ampliar a casa sobre uma parte do quintal. O espaço sob a laje poderia ficar aberto ou ganhar paredes, portanto mais cômodos. Mas a receita do homem nas empreitadas como mestre de obras, quando a doença de Chagas lhe permitia trabalhar, era a conta dos gastos domésticos. Por isso, a casa não tinha sequer varanda e começava à distância regulamentar do portão, ou a três metros desse limite, mais ou menos; uma escada ligava a cozinha ao fundo do quintal; não muito distante do pé da escada ele construiu uma cisterna com ajuda de seus companheiros de obras, e sobre o buraco redondo, perfeito, ajustou uma tampa de cimento também redonda, bastante segura e bem vedada. Não era uma cisterna funda, pois a região era originalmente um brejo e, naquela ocasião, os moradores tiravam proveito disso. Havia um poço a um quarteirão da casa, onde as mulheres lavavam roupa, trocavam idéia sobre eventuais problemas de saúde dos filhos, as mais venenosas faziam alguma fofoca, e quase todas cantavam de alegria ou de tristeza. Enquanto isso, os meninos brincavam com a argila.

     

    Voltemos à casa. Mais para o fundo do lote, além das bananeiras e do galinheiro, havia uma pequena privada. Era também de adobe confeccionado no próprio quintal. Esses blocos tinham as marcas das mãos da mãe daquelas seis crianças, porque era ela quem revolvia a terra, puxava água da cisterna para fazer o barro misturado com capim (essa mistura dá resistência ao material), colocava o barro na fôrma, alisava-o por cima e depois fazia o adobe, em estado quase sólido e como se fosse um grande pudim, escorregar do caixote até o chão, ao lado de outros blocos retangulares que já estavam secando. Era trabalho para todos os dias da semana, no intervalo dos afazeres da casa, até se completar o número de tijolos calculado pelo marido. Foi assim para construir a “casinha” no fundo do quintal, aonde as crianças mais novas evitavam ir à noite, com medo de assombração e, por isso, cuidavam das necessidades fisiológicas antes de escurecer. Antes, a mãe produziu também uma boa parte do adobe para a construção da casa – sala, dois quartos grandes e cozinha. No fim de semana, o marido recebia em casa alguns colegas que lhe haviam prometido conceder adjutório, palavra cujo significado talvez eles não soubessem: adjutorium, em latim, é ajuda, apoio ou socorro. Era uma ajuda providencial, a única forma de construírem com rapidez suas moradias. Esses mutirões ajudavam o grupo a desenvolver um forte espírito de solidariedade. Na casa das seis crianças, os maiores ajudavam a mãe na confecção dos grandes tijolos de barro quando ela conseguia programar esse trabalho para um horário depois que retornassem da escola. Mas a mulher nunca os deixava  sozinhos na tarefa, e assim todos os adobes tinham a sua marca em algum estágio da produção.

     

    Atualmente, o bairro onde morava essa família está bem diferente, com asfalto nas ruas, água encanada e serviço de eletricidade, melhorias que chegaram há muitos anos. Não se constroem mais casas de adobe, mas aquela continua de pé, agora com um segundo andar, acrescentado depois da implantação de alguns reforços de concreto em pontos estratégicos das antigas paredes. Aquelas crianças, que também se tornaram adultas há muito tempo, não querem nem saber das transformações no quintal da casa. Preferem guardar na memória seu cenário doméstico dos anos 50, um mundo exclusivo, feito de coisas simples, modestas alegrias e, algumas vezes, também marcado pela  impotência diante das fatalidades, como a picada de escorpião que levou uma das meninas e o acidente no fogão de lenha que impôs muito sofrimento a outra. As crianças superavam as pequenas e grandes tristezas viajando num aviãozinho feito de banana caturra verde e pedaços de madeira espetados de cada lado da fruta para imitar asas. A aeronave, pendurada num barbante por um pequeno grampo de ferro encontrado na maleta de ferramentas do pai, deslizava de algum lugar no alto da escada até o telhado da privada. Um dos maiores ia até a privadinha e subia o quintal empurrando o aviãozinho até o alto da escada e começava tudo de novo.

     

    Muitas vezes, enquanto estavam entretidos com esse brinquedo, caíam sobre suas cabeças algumas laranjas ou outras frutas que não se esborrachariam com o impacto. Às vezes a chuva era de balas ou pequenos doces embrulhados. Logo em seguida, a mãe chegava à janela da cozinha com um sorriso e perguntava o porquê da gritaria. Um dos menores (às vezes eu) sempre respondia com outra pergunta: “Mãe, quem será que jogou tudo isso pra nós?” Ela apontava para o céu e dizia: “Acho que foi Nossa Senhora, a mãe de Jesus.”

     

    Durou pouco a crença de que a santa fazia chover frutas e doces sobre nossas cabeças, mas ficou a lembrança daqueles dias. Atualmente, quando me encontro no fundo da minha casa, cujo terreno tem formação semelhante ao da casa construída pelo meu pai e minha mãe, tenho às vezes a impressão de ouvir o mesmo barulho provocado pela queda das guloseimas que minha mãe nos jogava em nome de Nossa Senhora.

    Ivani Cunha