SAUDAÇÃO DE NATAL - J.D.VITAL




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  • Saudação de Natal

    (16/12/2023)

     

    Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais

     

    J. D. Vital

    Cadeira nº 92

     

     

    E aconteceu naqueles dias que saiu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de todo o império romano.

    César Augusto, filho de Caio Otávio e de Ácia, sobrinha de Júlio César, chamava-se Otaviano, antes de se declarar divino.

    Tinha 19 anos quando seu tio-avô materno Júlio César, autor de “De bello gallico” sobre suas conquistas na Gália, sucumbiu assassinado a facadas no Senado.

    Os senadores acusaram-no de ambição e traição, de tramar contra a República para coroar-se primeiro imperador de Roma.

    Mais tarde, após derrotar os adversários, um deles o general Marco Antônio, amante de Cleópatra, rainha do Egito, Otaviano tomou para si os sonhos de poder do tio.

    Militar duro, com habilidade política, ele se nomeou imperador, com parentesco com a divindade.

    Mudou seu nome para Cesar Augusto.

    Disciplinou e fez seu exército imbatível. Reconstruiu a cidade, com prédios de mármore. E expandiu os domínios de Roma, por todo o orbe. 

    César Augusto decretou o recenseamento para cientificar-se do tamanho da população do império, que lhe devia pagar impostos.

    “E todos iam para a sua cidade natal, a fim de alistar-se”, informa o evangelista Lucas.

    José, que era da casa de Davi, também obedeceu ao imperador. O carpinteiro subiu de Nazaré, na Galileia, para Belém, terra natal do rei Davi, na Judeia, onde moravam parentes.

    Viajou com Maria, sua mulher grávida.

    A tradição cristã diz que José cuidou de dar algum conforto a Maria. Levou-a sobre o lombo de um burro.

    Foi uma viagem de 145 quilômetros até Jerusalém.

    Por estradas perigosas, covil de bandoleiros que mais tarde assaltariam e deixariam agonizante na beira do caminho o viajante da parábola do Bom Samaritano.

    De Jerusalém a Belém, a distância é curta– uns dez quilômetros, mas em terreno montanhoso.

    E Lucas narra, sem rodeios:

    “E aconteceu que, estando ali, se cumpriram os dias em que ela havia de dar à luz. E deu à luz a seu filho primogênito, e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem”.

    Foi assim que o Menino Jesus nasceu.

    Era apenas um número nas tabelas demográficas de um arraial nos cafundós da periferia do império mais poderoso do mundo.

    Belém, em hebraico “Casa do Pão”, permanece perdida, há dois mil anos, na periferia mundial, sob o nome de Palestina.

    Agrada ao cristão refazer pelo menos parte do trajeto percorrido, durante dois meses, pela Sagrada Família. De Jerusalém a Belém, de táxi, é um pulo, nem meia hora.

    Estamos no início do inverno em Israel.  Normalmente, não cai neve por aqui. Dezembro não é a melhor época para percorrer as vielas de Jerusalém, segundo o Serviço de Meteorologia do jornal “The Jerusalem Post”. Porque chove muito.

    Peregrinar a Belém provoca emoção e reflexão.

    Venham, vamos sair dos umbrais do King David Hotel, um palácio estonteante em sua sobriedade, bem ao gosto dos mineiros, construído pela família egípcio-judaica Mosseri.  Os salões decorados com a arte assíria, fenícia, hitita e muçulmana são testemunhas oculares de importantes eventos diplomáticos da conturbada história recente da terra de Jesus. Suas janelas abrem-se para a Cidade Velha, muralhas, casario de pedra, torres, tudo em tons ocre, ruas por onde Jesus passou, trôpego, flagelado, carregando a cruz.

    No lobby, um taxista já está à espera.

    De arquitetura similar à do Grande Hotel de Araxá, o King David Hotel, uma joia da hotelaria, destaca-se pelo charme - hospedaria da realeza, de celebridades e autoridades mundiais. Sobressai também pela tragédia histórica. O hotel foi alvo de ataque terrorista a bomba em 22 de julho de 1946 causando a morte de 91 pessoas, quando a região era um protetorado britânico.

    O taxista israelense explica que não há com o que se preocupar no quesito segurança.

    Haverá transbordo, com troca de veículos e de motoristas, na fronteira da Cisjordânia, área ocupada militarmente por Israel após a Guerra dos Seis Dias. A Cisjordânia vive cercada por um muro de 700 quilômetros, sob intensa vigilância armada até os dentes. Melhor, até os céus, vigiados pelo “Domo de Ferro”, o sistema de interceptação dos misseis lançados pelo Hamas da faixa de Gaza, ou pelo Hesbollah, do Líbano.

    Judeu não entra, palestino não sai.

    É o Muro da Separação.

    Que isola e sufoca a população palestina.

    É medida de proteção contra atentados aos israelenses, justifica-se o governo de Telavive.

    Pichado pelo artista Banksy, o grafiteiro londrino que mesmo no anonimato escalou o estrelato mundial, o Muro da Separação é parada obrigatória para a humanidade examinar a sua consciência.

    O paredão lembra-nos os muros do racismo, do apartheid, da intolerância; do gueto de Varsóvia, onde Hitler confinou os judeus na Segunda Guerra Mundial, o holocausto;

    Recorda-nos o Muro de Berlim, que os soviéticos construíram na Guerra Fria; o Muro do México, com 3.100 quilômetros de extensão levantado a partir de 1991 pelos americanos para conter a migração aos Estados Unidos.

    O motorista israelense mantém parceria com um taxista palestino. A combinação entre eles cintila como raio de sol repentino no céu nublado da Galileia.

    É uma esperança de entendimento, de paz e de fraternidade, sentimentos que avançam em nossos corações quando nos ajoelhamos na Basílica da Natividade.

    A igreja acolhe a gruta onde Jesus teria nascido.

    Uma estrela de 14 pontas, como a luz que guiou os Reis Magos, aponta para o berço daquele pequenino súdito de César Augusto que mudaria a história humana. Sem um golpe de espada, sem disparar uma flecha, um único tiro.

    Um visionário que desprezou a lógica das armas. Que pregou o amor – amar o próximo como a ti mesmo.

    O perdão ilimitado, para a mulher pecadora, até mesmo para os caluniadores, perseguidores e assassinos.

    Pregou a simplicidade. Ser leve como criança e solto como passarinho. Vestir-se como o lírio do campo.

    Ter fé, ela remove montanhas.

    Ensinou a oração ao Pai Nosso que está no céu.

    Exaltou os pés dos que anunciam a paz.

    Os humanos com sede de justiça. Os mansos e limpos de coração. Os pobres.

    E recomendou a garimpagem de tesouros que não podem ser saqueados. Nem confiscados pelo governo.

    Ninguém interpretou melhor Jesus que o italiano Giovanni di Pietro di Bernardone, o Francisco de Assis.

    É dele a mais perfeita imitação de Cristo, que nós conhecemos:

    Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz.

    Onde houver ódio, que eu leve o amor.

    Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.

    Onde houver discórdia, que eu leve a união.

    Onde houver dúvida, que eu leve a fé.

    Onde houver erro, que eu leve a verdade.

    Onde houver desespero, que eu leve a esperança.

    Onde houver tristeza, que eu leve alegria.

    Faz exatamente 800 anos que Il Poverello descobriu uma forma de traduzir aos camponeses a simplicidade ensinada por Jesus. 

    Ele inventou o presépio.

    Um método de catequese simples e de fácil compreensão, como a Eucaristia, do pão e do vinho, inventada por Jesus às vésperas da paixão.

    Tomás de Celano, primeiro biógrafo do santo, conta que no Natal de 1223, Francisco encenou o nascimento do Menino Jesus, com a participação de moradores da cidade de Greccio. Um bebê, paparicado por camponeses e animais domésticos, foi colocado na manjedoura, que em latim se diz “praesepium”, segundo informa o site “Vatican News” da Santa Sé.

    Por isso, Greccio, a 94 quilômetros de Roma, escondida dos turistas no Vale de Rieti, na região do Lácio, foi proclamada “Cidade Presépio”.

    Na expressão do seu biógrafo, o escritor inglês Gilbert Keith Chersteton, Francisco foi um santo com “a natureza de um tremor de terra ou a irrupção vulcânica” que renovou o mundo. Francisco teve a intuição de teatralizar a mensagem evangélica, na volta de sua peregrinação à Terra Santa no ano de 1219.

    Durante a quinta cruzada que buscava reconquistar os lugares santos, com a bênção dos papas Inocêncio III e Honório III, Francisco rompeu os muros da separação, da guerra, da violência, do ódio e da intolerância religiosa.

    Praticou aquele ainda hoje considerado o mais arrojado gesto de paz na história do diálogo entre o cristianismo e o islamismo, no texto de meu amigo Silvonei José Protz, da Rádio Vaticano. Ele encontrou-se com o sultão Malik al-Kamel, no porto de Damietta, 200 quilômetros ao norte do Cairo.

    Sobrinho de Nasser Salah-Uddin Yusuf Ibn Ayub, o chefe militar Saladino que liderou as forças árabes contra os cruzados, o sultão Malik al-Kamel ignorou os conselhos de seus sábios e acolheu Francisco. Aceitou o diálogo.

    O Natal deste ano, sob a inspiração de Francisco e al-Kamel, renova a mim e a você, Oriente e Ocidente, judeus e palestinos, russos e ucranianos, Venezuela e Guiana, brasileiras e brasileiros, o convite ao diálogo. À simplicidade. À construção de pontes sobre os muros da separação, religiosa, social ou política. 

    Cada um tem o seu Natal no coração.

    O meu remonta a 1952. Papai, metalúrgico e presidente da Banda de Música Santa Cecília de Barão de Cocais, morrera em agosto. Mamãe, rodeada de filhos e dificuldades, montou mesmo assim o presépio na sala forrada de cimento vermelhão. 

    Ela empapou os sacos de aniagem com grude de farinha de trigo. Salpicou-os de milhares de lascas metálicas de mica, feitas para brilhar. Como as faíscas do esmeril. Acomodou no chão os panos banhados em vidrilhos.

    Usou os dedos acobreados para afofar as pontas e desenhar recortes, à imagem dos picos do Inficionado e da Carapuça na Serra do Caraça. Depois, afundou, com o punho de onça parda, o centro do tecido rude para moldar a gruta de Belém.

    Enfeitou o cenário com musgos catados no quintal, serragem da serraria e areia branca trazida das lavras da Lagoa das Antas.

    No alto, dois anjinhos estendiam, de lado a lado, uma faixa escrita em latim: “Gloria in excelsis Deo”.

    No final, mamãe retirou da canastra as imagens de Nossa Senhora e de São José, os três Reis Magos – Melquior, Gaspar e Baltazar, o burrinho, a ovelha, o boi, um galo carijó e, eu acho, uma galinha garnisé que batia as asas para botar ovos de plástico amarelo.

    As personagens saltaram do seu esconderijo anual, para se posicionarem junto à manjedoura. Elas tinham permanecido exiladas no baú durante o ano inteiro, proibidas aos olhos infantis, como os gibis da rapaziada, à espera do relógio da matriz de São João Batista dar meia noite em 24 de dezembro, quando o Menino Jesus, o último a entrar no palco da minha memória, ocupava seu lugar, folgadão, de olhos bem abertos, perninhas cruzadas.

    Mamãe, então, entregou-me o melhor presente de Natal da minha vida: um pedaço de pão com queijo.

    Vivam as mães de Minas, pela reinvenção anual do Natal!

     Bom Natal. Paz e bem. Com pão de queijo, para todos, amigos e confrades do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e suas famílias lindas.