CRÔNICAS DO VÔ - CONVERSA FIADA DE SETENTÕES AQUARENTENADOS




Clique aqui para ampliar

  • CONVERSA FIADA DE SETENTÕES AQUARENTENADOS


    O telefone toca. Pelo visor da tela, vejo que se trata do vizinho, o Tonho da Flô.

    - Oi!

    - Tô ligando pra ver se você tem um almoço aí pra me oferecer. Tenho passado muita fome.

    - Que é isso? A comida aqui é racionada, os grãos de arroz são contados nos dedos e divididos ente mim e a Percilina.

    - Então, compra na minha mão aquela bicicleta que te mandei em vídeo.

    (Trata-se de uma bicicleta cujo quadro, ou tubo superior, é um tronco de árvore.)

    - Não. Eu não sei andar de bicicleta.

    - Puxa! Então, troca por uma cesta básica. Você pode vender a bicicleta depois.

    - Tá. E quanto custa a cesta básica?

    - Estou pensando numa no valor entre 600 e 800 reais.

    - O quê??? Uma cesta básica está entre 40 e 50 reais.

    - Esta é muito mixuruca. A que que eu quero tem que vir também com mortadela.

    - E quanto de mortadela? 100 gramas?

    - Você está brincando. 100 gramas não dá pra nada. Eu quero é 2, 3 quilos de mortadela.

    - Pensando bem, acho melhor você não se desfazer da bicicleta. Com esse confinamento por causa do corona, o gás de sua cozinha vai acabar acabando. E então? Você vai ter que apelar pro fogão a lenha. Aí, sua bicicleta vai servir como lenha.

    - Tá certo, mas para fazer o quê? Se aqui em casa não tem mantimento pra cozinhar.

    - Você é que pensa. A Flô, sabendo que você é fominha, fica escondendo as coisas, porque, se deixar, você come tudo de uma vez.

    - Será mesmo?

    - Pode crer. Agora, mesmo que o mantimento acabe, você pode fazer sopa de pedra. Você arruma umas 5 pedras de cascalho, coloca num tacho com 1,5 litro de água, com uma pitada de sal. Quando começar a ferver, tampa e deixa por 5 minutos. Aí está pronto. Você pode acrescentar, a gosto, umas cebolinhas, se tiver.

    - Obrigado.

    - Agora, vê se não sai de casa, respeita a quarentena. Você sabe: o ônibus “Cata Velho”, vira e mexe, tá passando aí na rua.

    - É. Flô foi lá fora e voltou correndo, achando que era o “Cata Velho”. Depois, viu que era o Corpo de Bombeiros, indo apagar um incêndio lá embaixo.

    - Mas a Flô não precisa se preocupar: ela não é velha, assim como a Percilina aqui em casa.  Velho é você, e eu sou um pouquinho velho.

    - Bom, pra terminar a nossa conversa, estou mandando um abraço pro seu cachorro aí. Ele está bem?

    - Está. De vez em quando, ele, o Thor, também manda lembranças pra você. Ele não se esquece da vez em que você ficou aqui cuidando dele, enquanto fazíamos um passeio pela Europa.

    - Ah, é? Ele falou com você?

    - Falar, ele não falou, não, que ele é cachorro e eu sou gente. Ele falou na linguagem de cachorro, e eu respondi na linguagem de gente.

    - Estou também mandando um beijo pra ele.

    - O quê??? Você beijava o Thor?

    - A gente às vezes se abraçava, beijava, brigava, era uma confusão danada, porque ele não me obedecia, fazia o que dava na telha.

    Nesta altura, Percilina Predillecta, por gestos, manda Eleutério terminar a ligação. Parece não estar gostando muito das intimidades do Tonho da Flô com seu cãozinho Thor.

    - Está bom. Vou desligar, que a Percilina está me chamando aqui para serrar uns tocos. Vou postar na rede o vídeo de sua bicicleta e ver se alguém topa trocar por uma cesta básica com mortadela. Abraço.

    Etelvaldo Vieira de Melo