MEMÓRIAS DO CORAÇÃO - CHARLES E HELENO ( HELENO CÉLIO SOARES )




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  • Charles  e Heleno

     

    Belo Horizonte. Gameleira. Seminário Coração Eucarístico de Jesus. Domingo. Mês de abril de 1961. Saída mensal dos seminaristas para visitas aos familiares e ou passeios diversos. Um pequeno grupo de seminaristas, na faixa de 14 ou 15 anos, exceto o Alair, bem mais velho, mais experiente, grande conselheiro de todos nós, ia de bonde, tomado na Gameleira. Paramos na Afonso Pena com Espírito Santo. Ponto final. Seria nossa aventura. Havia uma proibição de irmos a alguns lugares e entre eles o cinema. Subíamos a Rua da Bahia, Ninguém pode imaginar que algo tão simples agitava alguns do grupo. O mais efusivo era o José Márcio Garcia. Inteligente proprietário de um bom vocabulário. E eu pensava: - Este cara não vai ser padre. Vai ser jornalista. Até porque escreva muito bem e adorava ler. Mas, vamos ao caso. A cidade sem agitação, serena, sujeira nos passeios e um calor desgastante. Nas esquinas, aqui e ali, crianças, adolescentes, vítimas da sociedade, dançarinos do destino, já sem a referência do convívio social, maltrapilhos, sujos, cheirando a ”tinner”, párias da sociedade, causavam-me espanto, dó, medo, horror, misturados com compaixão.

    À nossa direita, o cine Metrópole. O cartaz anunciava: “Charles Chaplin” – “Apelo aos homens”.

    Entramos. Salão cheio. Daniel cutucou Marizio que tinha alguma dificuldade de escutar.

     – Não me pergunte nada não na hora do filme, viu?

     - Huuummm!

    O filme ainda nem começara e o som melodioso de “ I can’t stop loving you” espalhava meus pensamentos e me lançava em profunda meditação. Aliás, era a primeira vez que assistia a um filme fora do seminário. Grande aventura para mim.

    Não entendo e até hoje não compreendo. Repentinamente, vi-me, em carne e osso em 1916. Eu era um repórter de famosa revista brasileira e minha missão era entrevistar Charles Chaplin. E ele... E ele amigos, estava à minha frente.

    Mr.Chaplin, sou da revista “Um Novo Dia”. De que senhor mais gostaria...

    Cortou-me a palavra e foi dizendo sorridente e cheio de convicção.

    - É preciso que os homens se amparem mutuamente. O homem tem de viver de sua bondade e não de sua desgraça.

    Como mágica, retornei à sala de cinema. 1961. A meu lado, bem compenetrado, nosso colega Frei, atento ao filme.

    Há poucos dias, Belo Horizonte havia sido tomada por um temporal. Tempestades, gritos, destruição. Lares desfeitos, ilusões desaparecidas e meu coração ardendo. A mão de Charles segurou-me o ombro.

    - Olha, jovem repórter! Neste mundo existe lugar para todos. A Terra é rica. O caminho da vida é livre e magnífico. Mas estamos perdendo a trilha desse caminho.

    Seja mais explicito, Mr.Chaplin!

    - A cobiça, caro repórter, envenenou a alma dos homens. Fechou o mundo num círculo de ódio.

    Eu olhava atônito a figura simpática e pequena, engraçada, um sorriso triste e sério daquele pequeno grande homem que nunca mais sairia de minha alma.

     Como chegara eu ali? E ele continuava:

    - Raciocinamos muito, mas não cultivamos o sentimento. Precisamos mais de espírito humanitário do que de máquinas. Mais do que inteligência,necessitamos de amabilidade. Sem isso, caro repórter, a vida só poderá ser violenta e todo estará perdido.

     Meus olhos não se distraiam em sua face amargurada e que transparecia certeza de que eu pertencia ao ano de 1961, morava no Brasil, terra rica, mas de injustiças, contradições e miséria.

    - Mr. Chaplin, ) eu me achava, agora, mais encantado) que é o homem para o senhor?

    - O homem não é máquina. Não é gado. Homem tem de ser homem. Carregar o amor pela humanidade no coração. O homem tem de viver sem ódio. Somente aqueles que não amam e não são amados odeiam.

    E neste momento, o meu entrevistado olhou-me fixamente os olhos. Senti medo. Ele citou Lucas, o evangelho de Jesus Cristo.

    -Olha, o reino de Deus está no próprio homem.

    - Mister Charles, além de repórter sou também seminarista.

    -Então combata por um mundo novo, com mais tenacidade. Ajude a juventude a ter um futuro melhor (e seus olhos pareciam olhar a rua onde estavam aqueles maltrapilhos) e ensine aos jovens serem mais solidários. Combata por um mundo de interesses e responsabilidades recíprocas... Um mundo de ciência, onde o progresso levará a felicidade a todos.

    Abaixei a cabeça, pensativo, e o filme estava em seu final. Chaplin foi desaparecendo e pude ainda ouvir:

    - É preciso entrar num mundo  novo... Um mundo melhor... Onde os homens se elevarão cima de seus apetites, de seu ódio e de sua brutalidade.

    - Acordou, Pisca-Pisca? Riu Henrique Faria.

    Meio atordoado, fui saindo do cinema e os meninos de rua, na rua, sem amor e sem carinho.

    Heleno Célio Soares