DEVAGAR COM O ANDOR QUE O SANTO É DE BARRO - PROFESSOR DADINHO




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    DEVAGAR COM O ANDOR, QUE O SANTO É DE BARRO!

     

    Professor Dadinho(*)

     

     

    “Devagar com o andor, que o santo é de barro!” – Todos conhecem o provérbio que a sabedoria popular nos legou e que nos apela para a prudência, sugerindo-nos nada resolver apressadamente sem pensar nas consequências...

     

    Pois bem, trago aqui esse adágio para resgatar uma situação que vivi numa das capelas de minha paróquia, lá pelos idos de 1963, ocasião em que pude constatar que, na procissão, literalmente, o andor deve ser conduzido com cuidado, pois o santo é de barro.

     

    O fato a que me reporto aconteceu com certeza em janeiro de 1963. No final do ano anterior, eu havia concluído, no Seminário de Mariana, o curso de Humanidades e o ato que sagrava a formatura era a Recepção da Batina. Era, portanto, a primeira vez que eu vinha à minha cidade trajando batina. Era domingo, a comunidade celebrava a Festa de São Sebastião, e eu estava por ali, provavelmente em visita a meus tios que moravam naquela comunidade, denominada Vila Tanque, na cidade de João Monlevade. Com a Procissão marcada para as cinco da tarde, compareci empertigado, trajando minha batina novinha em folha.

     

    Formaram-se as fileiras de fiéis e a procissão tomou a direção do alto da vila, ao som de hinos religiosos. No final da procissão, vestindo opas vermelhas, vinha a Irmandade do Santíssimo Sacramento, comandada por José Ricieri, o homem de confiança do Padre Higino ali na comunidade. Em seguida, o andor com a imagem de São Sebastião e, depois, o padre. Posicionei-me como acólito ao lado do Cônego Higino.

     

    Aí aconteceu algo que até hoje não consegui explicar. O Cônego Higino, numa atitude surpreendente, coloca sobre meus ombros a capa de asperges vermelha e diz: “Hoje é você quem vai presidir a procissão. Agora você já está de batina, é bom ir-se acostumando... Vou ficar por aqui aguardando a volta da procissão e depois celebro a missa”. E lá fui eu morro acima, atrás do andor, repentinamente promovido de acólito a oficiante.

     

    Num primeiro momento, fiquei bastante assustado: eu acabara de completar dezoito anos - nem barba na cara tinha direito – e de repente me vi sob uma responsabilidade que pesava mais que aquela capa que eu portava. A procissão andando. E um se assustava: “Meu Deus, que padre novinho! Será que o Padre Higino mandou para a procissão o chefe dos coroinhas?”  E outro explicava: “Espera aí, gente! É o nosso seminarista de Monlevade, o filho de Sô Luiz e Dona Inhá!”  E uma beata completava: “Benza-o Deus! É mesmo o nosso Dadinho! Mas como ele leva jeito! Tão sério, tão compenetrado, vai mesmo ser padre. Vamos ter nosso primeiro padre! Deus ouviu as nossas orações!”

     

    A procissão andando. Tendo ouvido os comentários de aprovação, comecei a crescer dentro daquelas vestes sacerdotais. Sentia-me um verdadeiro padre... Padre, não! Eu já me imaginava bispo! A procissão subiu a rua, dobrou à esquerda, pegando a Rua 08 e, novamente à esquerda, retomou a Avenida Contorno, em direção à Capela. A essa altura eu estava dono da situação e, normalmente tímido e de olhos baixos, agora já arriscava olhar um pouco mais para a frente e para o alto, curtindo o papel que estava vivendo.

     

    A procissão começou a descer a Avenida Contorno. Casas enfeitadas com gosto pelo povo fiel. Fieiras de bandeirolas atravessavam a rua de um lado para outro. Os carregadores do andor não perceberam uma fieira de bandeirolas um pouco mais baixa, interceptando a imagem. Forçaram. Aí aconteceu o imponderável: a imagem se soltou, caiu e se quebrou...

     

    O incidente fez com que eu também despencasse do terceiro céu onde já me encontrava. “Meu Deus! Que maçada! Logo comigo e na minha primeira vez!” – pensei comigo, ainda sem saber como proceder. Todos se voltaram para mim, esperando a solução.

     

    Conferenciei rapidamente com Sô José Ricieri, procurando uma saída honrosa. Voltei-me para os carregadores: “Olha, gente, sem imagem  não tem procissão. Arrumem os cacos aí no andor do jeito que der e vamos prosseguir”. Imaginem como foi difícil equilibrar a cabeça do santo em cima do andor, morro abaixo, em direção à Capela!

     

    Mas o difícil mesmo foi encarar as pessoas à chegada da procissão. Por mais piedosos que fossem os fiéis, diante de situação tão hilária, não havia como conter o riso. Entre constrangido e decepcionado, relatei rapidamente o ocorrido ao Cônego Higino, conferindo com ele se teria tomado a decisão certa. Como era de seu feitio, ele apenas riu um pouquinho, aquele riso discreto, para dentro, e concluiu: “Ora, meu filho, não se preocupe. Você acabou de aprender, na prática, que a gente tem que ter cuidado com o andor, pois o santo é de barro”. E foi celebrar, incontinenti, como de costume, a santa missa.

     

    Até hoje, entretanto, não me saiu da cabeça que era eu o santo de barro que o Cônego Higino colocou no andor antes do tempo, sem ter tido o devido cuidado...

     

    (*) Professor Dadinho, apelido e pseudônimo literário de Geraldo Eustáquio Ferreira, ex-seminarista dos Seminários de Mariana, onde estudou de 1958 a 1966. Interrompendo a Teologia, no final de 1967, já como aluno do Instituto Central de Filosofia e Teologia e na situação de residente no Seminário do Coração Eucarístico. Cursou, posteriormente, também na católica, o Curso de Letras, formando-se em 1970, e, a partir daí, cumpriu carreira de 36 anos de magistério, atuando ora como professor ora como gestor de ensino.  Aposentado, escreve eventualmente, nos jornais da cidade, ensaios, crônicas e versos. É autor, também, de algumas obras de historiografia, em que recupera a memória de personalidades e instituições da cidade de João Monlevade.