•  

     

     

    Azul ferrete

                

     Na pequena União de Caeté, antes chamada Viúva, muitos moradores do arraial viviam de plantar “à meia “ ou “arrendado”. No modo “à meia “, o dono da terra fazia a aração  e o resto, estocar a terra, as sementes, plantar, capinar , colher, era por conta do meeiro. Quando ocorria, a colheita era dividida em duas partes iguais, uma para quem tivesse plantado e a segunda para o dono da terra. Pode , hoje, parecer injusto, mas funcionava assim. Quem não plantava, geralmente tinha uma profissão, que poderia ser oleiro, pedreiro, carpinteiro, açougueiro, ferreiro, consertador de coisas, especialmente máquinas de costura, tesouras e por aí vai. Meu pai era sapateiro, neste mister, colocava meias-solas , saltos, costurava sandálias. Recuperar um calçado usado ou velho era o normal. Havia até as fôrmas de madeira no formato dos sapatos para que eles voltassem pelo menos a parecer novos. No final do conserto, meu pai usava tinta e graxa da cor dos sapatos; com o cheiro dos produtos e o brilho produzido pela flanela insistente e meticulosamente usada. O dono dos sapatos saía satisfeito.  Meu pai , como muitos outros, não vivia de uma coisa só. Produzia sua própria sola , trabalhava nas fazendas  dias inteiros consertando arreios, cangalhas e outros utensílios usados em cavalos e burros. Aceitava algum desafio para qualquer conserto no que se tratasse de couro, sola, cola, pregos, verniz, fio pardo, sovelas e outros. Curtia os couros para ter a sola e  isto demandava ir nas capoeiras atrás das cascas de Barbatimão, reduzi-las a quase pó, e colocando os couros na água, com algumas pedras em cima para não flutuarem, fazer várias camadas de  couro/casca/couro/casca. Nós também plantávamos “à meia”. Naquele tempo só havia dois meios de comer : plantar ou tomar emprestado até a próxima colheita. O dinheiro era raro e não havia onde comprar, não havia arroz beneficiado, só em casca. Nas vendas existentes  pouca coisa se comprava : querosene, rapadura, pão sovado, biscoito de polvilho, farinha de mandioca, farinha de trigo, toucinho e gordura de côco, às vezes mais, às vezes menos. Arroz em casca e café em côco poderia ter ou não.

                O arroz era o rei das refeições e comer sem arroz era demais. Sinal de fraqueza e pobreza. Todos que plantavam , plantavam arroz, feijão e milho, Algum que não tinha plantado um dos três, trocava com outros o que tinha plantado. Funcionava a troca de alimentos, arroz por milho, café por feijão e empréstimo para pagar na “colheita “.

                O arroz era o arroz vermelho, o mais comum. E era bem vermelho, mas rendia muito. O arroz branco existia, mas só era plantado pelas famílias que iam casar uma filha no ano seguinte. Ambos eram plantados apenas nas várzeas, porque se faltasse chuva , podia-se abrir regos levando água para o meio do arrozal.

                O corte do arroz demandava muito trabalho , sendo que  uns trocavam dias com os outros, para que isso fosse feito mais rápido. Havia o “terreiro de arroz”, uma área  de onde era tirada toda vegetação e ficava limpa e seca; acho que era até varrida. O arroz ali ia se amontoando , amontoando. Depois se espallhava para secar. Seco, ato contínuo, bater nele com varas para soltar. Depois tinha a peneiração e a assopração até ficar no ponto de ir para os sacos.

                Em casa , quando  queríamos comer arroz, tínhamos que pilar para tirar a casca que virava farelo, e levávamos um punhado para nossa mãe olhar. Não, ainda não está bom, pode pilar mais, ela dizia. Repetíamos várias vezes o processo até ver o brilho nos olhos dela. Agora está bom , pode peneirar e assoprar e colocar na lata.

                   Era costume, quando íamos a mandado à casa de algum vizinho receber a recomendação de não aceitar o comê se eles ainda estivessem comendo. Fazer o contrário dava xingatório e até puxão de orelha. Mas na casa da Dona Ainha, se chegasse na hora do comê, ela já ia pegando o prato. Não , Dona Ainha, não precisa, não quero comê, a gente dizia. Ela , com sorriso nos lábios, dizia que era bobagem nossa não querer, largava o prato e enchia uma colher de sopa de arroz fumegante e colocava na nossa mão. O arroz de Dona Ainha era muito gostoso, mas era azul. "Azul ferrete", eu dizia para minha mãe, não sei quem me ensinou esta cor. Um dia quebrei a cabeça para saber porque o arroz dela era azul. Em minha casa, pensei , usava panela de barro para fazer o arroz e na casa dela  usava panela de ferro;assim  o arroz vermelho na panela de ferro ficava “azul ferrete”.

     

    Geraldo Felix Lima

    Confins – 28/03/2022