ENTREVISTA COM O PADRE PIGI




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  • ENTREVISTA COM O PADRE PIER LUIGI BERNAREGGI – PADRE PIGI

    24 DE AGOSTO DE 2019 – XIV ENCONTRO DA “EXSECORDIS”

     

    1 – Você nasceu em Milão, na Itália, em 1939, no ano em que Adolf Hitler invadiu a Polônia, a Segunda Guerra Mundial começou e Benito Almicare  Andrea Mussolini levou a Itália a aproximar-se do regime nazista alemão. Como foi sua infância em um país fascista?

     

    - Foi uma infância no horizonte da família. O regime político não chegava a penetrar na beleza do ambiente familiar. Tive a alegria de ter uma família bem unida: irmãos, primos , tios e  tias. A minha mãe tomava a frente, animando e motivando todos a participarem das brincadeiras sadias, passeios, férias comunitárias, visitas, conversas amigas, conselhos e muito mais.

     

    2 – Fale de sua família. Que tipo de indústria seu pai dirigia? Muitos empregados?

     

    - Já falei um pouco de minha família.  Meu pai e os meus tios eram todos empreendedores autônomos, sendo essa  a mentalidade tradicionalmente dominante na minha terra. Meu pai era sócio de uma empresa de distribuição de aços especiais para muitas fábricas , também autônomas, do setor metalúrgico de nossa região. Os “empregados” se constituíam em  um grupo aproximado de  40 pessoas, que participavam ativamente de tudo e ganhavam proporcionalmente ao seu desempenho no andamento da firma, bem no estilo da mentalidade empreendedora típica do povo milanês até hoje.

     

    3 – Como, muito antes da Fiat, um filho de gente rica veio parar em Belo Horizonte em l964?

     

    - Eu participava do movimento de comunidades cristãs, nas escolas médias da Arquidiocese de Milão, chamado “GIOVENTÚ STUDENTESCA”  – “GS”, onde havia  um  grupo encarregado de verificar a  vocação de cada um de nós. Nesse  grupo é que comecei a vislumbrar para mim o fascinante horizonte da virgindade consagrada. Tinha 16 anos. Durante todo o período da Universidade, na Faculdade de Filosofia, a minha escolha por este estado de vida se formulou conscientemente no voto de consagração que eu fiz,  sem nenhuma formalidade, na perspectiva de atuar na criação da Comunidade Cristã Universitária e no ensino da Filosofia como estado de vida futuro. Todavia, o encontro com  Dom João e  Dom Serafim que,  presentes na  Itália para o Concílio Vaticano II,  vieram contar nas  “GS” a situação crítica da pastoral das vocações para padres em Belo Horizonte,  fez com que eu e mais três amigos, juntamente com vários colegas também consagrados, decidíssemos passar a nossa vida aqui em Belo Horizonte, a serviço da Arquidiocese.  Dom João encarregou o jovem Padre Reginaldo Pessanha de passar conosco alguns  meses,  para perceber melhor os nossos propósitos. Finalmente, a pessoa do próprio Reitor da Seminário Coração Eucarístico, o Padre Hélio Ângelo Raso, foi  nos buscar,  em fevereiro de l964.

     

    4 – Você já era doutor em Filosofia quando chegou ao Seminário Coração Eucarístico. Já lecionou Filosofia? Fale de seu curso de Teologia.

     

    - Lecionei Filosofia no ICFT (Instituto Central de Filosofia e Teologia)  da Universidade Católica de Belo Horizonte, por 23 anos. Contemporaneamente, fui aluno de Teologia (l964-1967).  Tive a sorte de encontrar verdadeiros “mestres”, que não poderia conhecer se estudasse Teologia na Itália, mesmo em Roma. Frei Martinho Penido Burnier, recém chegado da “École de la Bible de Jerusalém”; padre Orlando Machado, filho de mãe favelada, mulato, dono de uma cultura sem limite e de uma visão de enorme profundidade teológica da vida atual no mundo atual; padre William Silva, assistente nacional da JOC, dissolvida pela ditadura militar, coordenador da pastoral da Arquidiocese, comunicador de tudo o que acontecia no Concílio Vaticano II, verdadeira “testemunha de cristo” e “amante da Igreja” até na morte. Seu corpo foi  achado caído ao volante de seu fusquinha, sozinho e de madrugada, após encontrar com casais na região de Venda Nova , Pampulha;  Frei Vicente dos Sagrados Corações, capaz de nos fazer sentir a beleza e a força do Direito Canônico, tão desprezado na época, como fator constitutivo da nossa personalidade e testemunho real de vida no mundo de hoje; Frei Bernardino  Leers, Frei Carlos Masters, e  tantos outros que a solicitude do  Padre Hélio, nosso reitor, conseguia conquistar para cuidar de nossa formação, mesmo sendo muito requisitado na Igreja do Concílio.

     

    5 – Quais suas primeiras lembranças de Belo Horizonte e da Igreja no Brasil?

     

    - Eu, inicialmente, senti uma enorme diferença entre a minha experiência na Itália e a realidade brasileira. Sobretudo, dificuldades de comunicação.  A minha linguagem não permitia expressar-me, gerando uma impressão de estraneidade e isolamento, de equivocação,  até de ridículo e de ser tolerado por educação, sem simpatia, por eu  estar me entrometendo, como um  estrangeiro ou um “estranho”. Depois, o Padre Hélio me disse assim: “ Olha, Pigi, esqueça que você é italiano,  mas nunca pense em  ser brasileiro. Assim, você estará no seu verdadeiro papel  de ser um  padre missionário que obedeceu a um chamado.” A partir daquele momento, procurei mais obedecer, escutar, servir, receber, prestar atenção, abandonar-me ao Senhor e é  assim que até agora pretendo viver.

     

    6 – Originário do Movimento COMUNIONE E LIBERAZIONE, fundado por Dom Luigi Giussani em 1954 no meio estudantil milanês, como você se aproximou dos movimentos sociais em Minas Gerais?

     

    - O Movimento “Comunhão e Libertação” surgiu na Itália bem depois que eu estava aqui no Brasil (l968/70). Eu vim aqui não em nome de algum “movimento” e sim a serviço da Igreja como tal. Se eu viesse “mandado por um Movimento”, a minha tarefa seria, antes de mais nada, criar aqui aquele movimento. Isso eu não fiz nunca, embora inúmeros amigos fizessem este Movimento. Contudo, tinha com todos  uma relação de amizade que brotava  lá da “GS”. Ora, os movimentos sociais, aqui em Minas Gerais, que eu conheci se resumem basicamente em um: a UTP (União dos Trabalhadores da Periferia), criada nos anos 70 pelo finado Xico Nascimento. Ficamos amigos, porque o Xico, embora fundador do Partido Comunista, quando fazíamos nossas reuniões, dizia sempre: “Desta porta para dentro, eu não sou comunista, nós não temos partido, mas todos somos unidos pelos direitos dos favelados”. Foi assim que, enquanto o Xico Nascimento esteve entre nós, a Igreja de Belo Horizonte teve a sua “pastoral de favelas” bem unida com a UTP e conseguindo grandes feitos, como  a Lei Municipal Profavela, que hoje se tornou a Lei Federal REURB,  autorizando  o poder público a  titular em cartório de imóveis todas as famílias que, em terreno urbano estejam morando, sendo pobres e não  possuindo outro imóvel no Município, em qualquer terreno público ou particular.  Além disso, a REURB criou a figura do “direito de laje”. A laje é considerada um outro lote que pode ser usado, vendido e  alugado, entre outros,  pelo dono do terreno.

     

    7 – Secretário particular do Cardeal Giovanni Battista Montini, mais tarde eleito Papa Paulo VI, Alberto Antoniazzi veio com você. Vieram outros italianos também?

     

    - Como já disse na resposta à terceira pergunta, do grupo de consagrados  da “GS” de Milão, vieram para o Brasil várias pessoas.  Inicialmente, só por um ano trabalhando no ex-colégio Helena Guerra, Giancarlo Conci, Italo Quillico, Lidia Acerboni e Franca Ferrari. Em seguida, em l962, Nicoletta Padovani e Maria Rita Morreale. Em l963, Alberto Antoniazzi, para terminar Teologia e imediatamente ser ordenado Padre.  Em l964 , Luciano Di Pietro, Paolo Padovani , irmão de Nicoletta, e eu para cursarmos Teologia e sermos ordenados em l967. A partir de l965, houve  uma verdadeira “revoada” de jovens rapazes e moças para o Brasil.  Os homens foram  para o Seminário e as moças para a  “casa”,  sendo  Nicoletta a  responsável e coordenadora.  Nesta “revoada”, havia pessoas de outras regiões da Itália  como Emília, Sicília dentre outras

     

    8  =  Depois da ordenação sacerdotal, em 17 de dezembro de l967, você conseguiu, literalmente, aquele ideal dos seminaristas da época, que não desejavam ser padres de sacristia.  Você foi para a periferia de BH. Em quais paróquias trabalhou?

    9 – De certa forma, você foi precursor do Movimento dos Sem Terra e dos Sem Teto. Conte um pouco de seu trabalho na área.

     

    - A primeira e fundamental experiência paroquial foi ajudar o Padre Carlos Fragoso Filho na nova paróquia do Eldorado (l968-1971). Com a ajuda de um casal missionário italiano (Battista e Eufrasia), contemporaneamente,  realizamos a criação da Comunidade da Vila 31 de Março - Paróquia do Bairro Dom Cabral.  Fiquei na Paróquia de Santo Antônio, da Avenida Contorno, aos cuidados do meu ex-reitor do Seminário , de l972 até l977. O Padre Hélio Ângelo Raso me acolheu porque estava muito estafado. Mesmo assim, deu para ajudar a comunidade da Vila Suzana a se formar, até construirmos a sua bela Igreja . Em 29/6/1977, criamos a nova paróquia no lugar mais carente entre o bairro lº de Maio e Providência: a Paróquia De Todos Os Santos , contando com o apoio  da Serva de Deus,  Madre dos Anjos, além de  um casal missionário italiano (Emilio e Maria Rita Brughera). Em l982 – l983, com 3.500 famílias “sem- casa” formamos o Bairro Felicidade, através do Movimento “Amabel” – Associação dos Moradores de Aluguel  da Grande Belo Horizonte”. Em l983 e l987 fui morar no Seminário Coração Eucarístico de Jesus, para lecionar Filosofia na PUC/Minas. Nesse período, tomei conta da Paróquia de São Brás, no Morro das Pedras, onde formamos uma bonita Comunidade, abrangendo também o Conjunto Santa Maria , ocasião em que  tive a enorme alegria de ajudar o meu antigo pároco Carlos Fragoso Filho a preparar a criação da Primeira grande paróquia de favela da Diocese “Nossa Senhora do Morro”, no Morro do Papagaio.  Entre os anos de 1988 e 1990, fiquei em Milão, onde o Cardeal Martini me acolheu por um tempo de repouso e reflexão.  Nesses anos, fui encarregado de formar uma nova comunidade na periferia, numa área rural próxima à cidade - Cascina Campazzo – onde surgiu uma bonita comunidade, cheia de iniciativa e fraternidade, viva e bonita até hoje.  De volta ao Brasil, no início dos anos 90, a Campanha da Fraternidade levantou o problema da moradia dos pobres , sendo  o estopim para criação do “Bairro Metropolitano”.  Com um novo movimento de Sem-Casa, compramos a fazenda Castro, próxima ao Bairro Veneza, em Ribeirão das Neves, onde estão assentadas 4.000 famílias, depois de uma longa contenda com o município,  que tudo fazia  para desanimar o movimento, Hoje,  encontra-se lá  uma comunidade bonita e agradável, com todas as estruturas básicas de uma bairro decente, cujo padroeiro é São Vicente de Paulo. Atualmente, com um grupo de docentes de Engenharia  da PUC/Minas, estamos trabalhando para criar uma equipe técnica que possa ajudar o assentamento de novas comunidades de “sem –casa”. Isso se deve ao fato de que os  “sem-terra urbano” são atualmente 200.000 famílias na Região Metropolitana, com um crescimento vegetativo de 5% ao ano;  em 20 anos,  vai gerar um “ déficit” de 400.000 famílias.  Além disso, a mesma equipe poderá assessorar a Nova Região Metropolitana da Diocese (“Nova Senhora do Rosário”) a regularizar as 500 favelas das quais é responsável , através da  lei REURB  que acima citamos.  O instrumento básico desses trabalhos técnicos deverá ser o “drone”.

     

    10 – Você chegou a ser preso por agitação ou subversão social?

     

    - Sim, duas vezes. Na segunda, gerou-se um processo, que o escritório de advocacia que me defendeu conseguiu extinguir, por excesso de prazo. Em ambos os casos, tratou-se de defesa dos pobres que ocupavam determinado terreno, aplicando o código de direito que lhes faculta  defender-se com as próprias forças.  Depois de levado ao antigo  “DOPS “ , na Avenida Afonso Pena, uma vez Dom Serafim e outra vez o Senador Ronan Tito  me livraram de lá.  Ainda estávamos no tempo da Ditadura.

     

    11 – Você dizia, corajosamente, que a sociedade mineira se preocupava mais com as árvores do que com as pessoas pobres. Mudou alguma coisa?

     

    - Parece-me que a tendência hoje seja de não se preocupar mais com NADA.

     

    12 – Agora, aos 80 anos de idade e 52 de padre, você é exemplo de luta e resistência. Concorda com a frase de Mussolini de que “a poltrona e as pantufas são a ruina do homem”?

     

    - Onde eu moro agora (Convívium Emaús) é tudo de primeiro mundo, muito bonito, muito perfeito. A gente não precisa fazer nada, não falta nada. Com 81 anos parece que chegou a hora de só pensar na vida eterna, no Céu e se desprender de tudo. Sinceramente, nunca pensei como é difícil fazer isso!

     

    13 – Um jornalista de “O ESTADO DE MINAS” em 2012, escrevendo sobre o seu trabalho nas favelas, disse que você é a “personificação” da renúncia. É isso mesmo?

     

    - Personificação da renúncia, para mim, hoje, é não ter nada o que  fazer o dia todo: primeiro, enferruja o corpo, depois enferruja a mente e, por fim, enferruja o coração.

     

    14 – Com a escritora italiana , Rosa Brambilla, você publicou em 2010, pela “Piccola Casa Editrice” o livro “Um céu no chão. Um cielo in terra. Il samba del morro”. Você gosta de samba?

     

    - Na Paróquia de Todos os Santos existem dez comunidades. No sábado, às vésperas das festas de comunidade, o pessoal criou a noite de seresta , cantando   sambas de raiz e  as músicas que nunca são esquecidas, porque expressam o mistério da vida.

            Vista assim do alto

    Mais parece um céu no chão

    Sei lá

    Em Mangueira  a poesia

    Fez-se mar e se alastrou

    E a beleza do lugar

    Prá se entender tem que se achar

    Que a Vida não é só isto que se vê

    É um pouco mais

    Que os olhos não conseguem perceber

    E as mãos não ousam tocar

    E os pés recusam pisar... e assim vai!

     

                                                                             JD VITAL

    JORNALISTA - EXSECORDIANO