ESCRITOS HELÊNICOS - PODE ME ESCUTAR?




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    Pode me escutar?

    - O Senhor pode me escutar?

    Surpreendido com alguém em minha frente, olhei para aquele jovem, aparentando seus vinte poucos anos, olhar vago, tez amorenada, cabelos lisos, negros, nariz um pouco delgado, um metro e setenta ou mais, forte, roupas simples, limpas, um boné preto que ele tirou logo que o convidei para sentar-se.

    Lembro-me que minha primeira reação foi permanecer em silêncio até ele ir embora. Segurando um copo de cerveja, o bar do Xereta... (Este bar que não mais hoje existe, na Praia da Costa, Vila Velha, lá  no Espírito Santo, meu segundo Estado, foi cenário de muitas situações ,ora engraçadas, ora de escutar filosofia de bêbedos e de discussões calorosas que terminavam em abraços)

    - Sente-se. Seu nome?

     Perdi meu nome no porto de Vitória e lá também parte de minha vida. O senhor pode me escutar?

    -Claro! Claro! Sente-se. Um copo de cerveja?

    -Não! Só quero falar!

    Sua voz era branda e seus olhos já não pareciam calmaria. Havia, sim, tristeza ali dentro, lágrimas não. Talvez angústia ou ausência de sabor.

    - Senhor, na calçada, não tão bem conservada do porto de Vitória, corríamos, nós guris capixabas e atentos às pesadas sacas de café que pesavam os ombros nus e suados, num ir e vir de sorrisos,   gritos animados dos estivadores. Antes era antes. Hoje não tem  graça nem sentimentos. Tudo é com máquinas.

    Fiquei atento aos gestos do rapaz, aos olhos, face, a o meneio da cabeça.

    Ofereci-lhe novamente um copo de cerveja.

    - Uma coca-cola. Pode?  Senhor, lá em cima... O senhor conhece o porto?

    Pois é! (E ia descrevendo o local, o andar ligeiro dos carregadores de

    sacas de café, todo o ambiente que, com palavras, fotografava com a alma e o coração e transmitia-me como quem estivesse diante de um auscultador profissional).

    - Fale à vontade. Emendei, narrando-lhe algo para deixá-lo mais à vontade do que estava.

    - Senhor, lá em cima do ponto... O senhor sabe o que é. Não sabe? Pois bem!

    Lá de cima do ponto, vinham as ordens do apontador.

    - É! Já estive lá e também ficava observando tudo. Homens carregando o café e o comando do apontador. Inclusive, tenho algumas fotos que tirei há uns 30 anos dessa cena. É até possível que eu tenha essas fotos ainda comigo.

    - Se o senhor ainda tiver essas fotos pode me mostrar?

    - Claro! Qualquer dia as deixarei aqui com o Xereta.  Se gostar, fique com elas. Se não gostar...

    Silenciei. Era hora de ele continuar falando. A coca-cola chegou e ele sorveu um copo de uma só vez.

    - Pereira! Gritou com sorriso enérgico o apontado. Faltam três!

    Torneira! Mais seis!

    E continuavam as ordens e os apontamentos.

    E eu olhava aquele homem, orgulhoso de seu comando. E queria ser igual quando crescesse.

    Chega o fim do expediente. Era hora do banho de mar. Dos mergulhos dos estivadores e as brincadeiras na água que os faziam esquecer-se do cansaço.

    Tudo isso me encantava. Ele, o apontador, moreno, porte elegante, sorriso um tanto guardado só para si me fascinava.

    Depois do banho de mar, águas nem tão limpas, vinha ele até nós guris.

    Corria os olhos sobre nós e sobre o porto. Uma palavra, um gesto, um roçar pesado de mãos calejadas sobre nossas cabeças e logo após, com os companheiros, dirigiam-se ao bar, ali próximo.

    Seu afago pesado  e carinhoso sobre meus cabelos tocam-me a alma até hoje.

    - Quem era ele, rapaz, que ainda não saiu de dentro de você? Por que tantas recordações que o colocam triste?

    - Podia ser meu pai!

    Aquele rapaz... Não lhe  perguntei o nome. Eu estava simplesmente inebriado com sua narrativa.

    - Ah! Sinto falta sim... De um pai. Desapareceu de minha casa, no Paul e eu era ainda muito pequeno. Podia tanto aquele apontador ser meu pai!

    Senhor, o navio partiu numa noite de sexta-feira. Singapura. É o que soubemos. E levou consigo o apontador. O sorriso franco e enérgico, bom e distante se foi embora.

    Três dias . voltei ao Xereta . Pedi-lhe que entregasse um envelope marrom ao rapaz que iria procurá-lo.

    Dias após, Xereta me falou que o rapaz do envelope voltara  e deixou um recado para mim. Assim estava escrito:

    - “Senhor, mostrei as fotos a minha mãe. Ela olhou... Chorou baixinho E me disse: - É seu pai !”

    Heleno Célio Soares