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    LENDA

     

    Por que me olhaste, Orfeu, sabendo-me inda sombra?

    Eu vinha atrás de ti, embora à noite.

    Ao teu encontro me levando iam

    os campos e as ervinhas.

    Cúmplices do Amor,

    seguíamos.

     

    Por que não resististe ao medo e ao pranto

    que a ti partindo, deu-me vã partida?

    Tu, a Perséfone e ao deus Hades imploraste

    o frêmito da vida. Ansiavas, cego, ver surgir

    da Morte, tua Eurídice, pela áspide ferida.

     

    Loucura, visões tardias, cinzas, tornaram-me

    imagem de fantasma que nem há.

    A lira em fuga na tocata, ira vadia,

    em tom menor teceu-me o corpo

    pluma, vazio, dissonante ave.

     

    Hoje, olho-me: escombro. Desfolho no chão subterrâneo

    a paixão de Aristeu, as mênades, a serpente,

    Orfeu - lançado ao rio Ebro, os rouxinóis.

    Depois, desaviso traz música

    solo pausado.

    Silêncio.

    Nada.

     

    Graça Rios/21