•                                             Louco de Guerra

     

    ”Na gaveta da mesa de nossa sala havia um pente de munição com 5 balas, cinco projetéis de rifle 1918; sempre olhava para aquilo, mas não entendia de onde tinha vindo e para que serviria; a muito custo, já com mais de 18 anos, descobri como aquilo chegara à nossa casa.”

     

                Inesperado, ninguém o esperava mais. In extremis, vinha da boca da guerra. Estivera prestes a ser devorado pelo dragão, mas no último momento, o armistício. A rendição, a derrocada do Eixo. O sonho de ir, mesmo entre mortos, pisando cadáveres, transpor o oceano, jogado para longe. Adiado para sempre. Nunca faria a viagem de seus sonhos, tantas noites indormidas, visões de quadros sucessivos de louca coragem, mãos comichando em armas engatilhadas, inimigos se  estrebuchando. Ele vencedor, garboso, vitorioso , ovacionado.

                Trazia no alforje um par de coturnos, novo em folha, uma farda verde-oliva ainda não vestida. Vinha marchando na poeira, vendo ao longe o casario brando e os coqueiros de macaúbas, divisava casas definidas, desse ou daquele amigo.

                - Como será, como serei de agora em diante? Daqui pra frente?

    Falta-lhe ânimo para retomar o trabalho da roça, sobra vontade de ficar à toa, pescando lambarís todas as tardes. Os bambuais misturados, verdes e amarelos, foram ficando para traz, desceu o morro esfalfado, chegou até a casa do sapateiro, depois da grama e do corguinho, gritou :

                - Oh de casa – e bateu palmas. Seu José falou :

                - O filho de Wenceslau voltou .

                - Que bom, não morreu na guerra – e foi saindo porta a fora, o rapaz correu para cima dele entusiasmado.

                - Matou muita gente, Valdomiro ?

                - Seu Raimundo, matei gente a valer, mandei muita bala, eu estive lá !

    E falando isto, jogou o alforje no chão. Depois de um abraço e de uma certa contemplação certificadora , arrancou do meio das suas coisas um pente com cinco balas de rifle.

                - Trouxe este presente para o senhor !

                - Moço, que vou fazer com isto ?

                - Guarda de lembrança da guerra .

    Valdomiro acabou de tomar o café do bule e foi se despedindo:

                - Tenho que acabar de chegar.

    Sua casa ainda estava umas quatro léguas à frente.

                - É bom, seu pai tem estado aflito, esperando notícias.

                - A aflição tem razão, seu Zé, eu só não morri , de sorte!

                 -Eu sei, eu sei! Deus seja louvado!

    No resto do caminho para a sua casa, Miro ia pensando :

                - Eu fui na guerra, mesmo, sô. Claro que eu fui, eu voltei até meio doido. Eu estou meio doido. Todo mundo vai ver, é claro que eu fui na guerra. Fiz muita valentia. Ajudei tomar Monte Castelo. Estive lá. Claro que eu estive. Mesmo se for só em espírito, eu estive. Eu lutei, sô! Lutei muito. Não ganhei medalha, mas é certo que eu também venci.

    E a partir daquele dia se convenceu definitivamente que tinha estado nos campos de batalha da Itália,  sempre disposto a fazer demonstrações de lutas com coreografias meticulosas.  Ganhou direito ao ócio, comendo sem trabalhar. Aprendeu a ser um louco de guerra.

    Geraldo Felix Lima